O princípio básico de canon (cânone, em português) é um de organização muito abrangente. Basicamente, é um conjunto de regras, princípios e padrões que existem para determinar o que deve ser considerado no estudo e, mais ainda, no diálogo, sobre um corpo de obras que se juntam para formar uma só coisa.
Apesar de o termo ser exaustivamente usado para discutir literatura no fandom, canon segue tendo um significado acordado informalmente. Refere-se, nessas discussões, mais ao que é criado inteiramente pelo autor (desconsiderando rascunhos ou ajustes editoriais), e menos às leis e regras que justifiquem essa classificação. É como se não se discutisse as leis e regras, e sim o que se encaixa em uma coleção que é chamada de canon. Cria-se então um significado novo para o termo: o corpo de obras de autoria exclusiva do criador da mitologia.
Os canons de “Harry Potter”
A série de sete livros “Harry Potter”, lançada entre 1997 e 2007, por J.K. Rowling, é o ponto de partida. É considerado um canon fechado porque tem um arco planejado. Se considerado então que as sete obras iniciais iniciam e encerram o arco, se estabelece uma primeira “coleção” dentro da mitologia. Então, temos o primeiro canon: o canon de “Harry Potter”.
Durante a publicação da série, Rowling escreveu e publicou Animais Fantásticos e Onde Habitam e Quadribol Através dos Séculos, ambos vendidos como “livros de acompanhamento”. Discute-se que talvez essas obras devem ser incorporadas ao canon de “Harry Potter”, mas como estes não fazem parte de forma alguma do arco de “Harry Potter”, então se estabelece mais um canon: o canon dos livros de acompanhamento, que mais tarde, em 2008, incorporaria mais um: Os Contos de Beedle, o Bardo.
Com a distinção das duas coleções, então um novo canon se materializa para englobar as duas coleções previamente citadas, o canon da mitologia. Todos os livros das duas coleções seguem as mesmas regras e se passam no mesmo mundo, mas não são parte da mesma coleção intrinsecamente.
O canon cinematográfico
A franquia de oito filmes “Harry Potter”, baseado na série de livros, também ganha seu próprio canon. Por ter roteiros que não foram escritos por J.K. Rowling, ele se desvincula do canon da mitologia de Rowling. Este canon geralmente é pouco discutido no fandom, se não para comparação e críticas baseadas na história original na qual as obras são baseadas. O canon cinematográfico viria a ganhar mais notoriedade em 2016.
Em 2016, Rowling foi autora do roteiro de Animais Fantásticos e Onde Habitam, um filme com uma história nova e inédita. Como no cinema o roteirista tem pouca voz criativa depois da escrita, é provável que diversas ideias levadas ao produto final não tenham autoria de Rowling. Ela também é produtora do filme, fazendo a quantidade de discrepância entre o roteiro e o produto final diminuir, mas não pode ser negligenciada.
Levemos também em consideração que a equipe técnica e todos os conceitos artísticos, desde a fotografia até o figurino, são os mesmos da série baseada em “Harry Potter”. Isso faz com que a obra tenha uma ligação muito mais evidente com os filmes de “Harry Potter” do que com os livros do canon original. Animais Fantásticos e Onde Habitam se junta então aos oito filmes de “Harry Potter” no canon cinematográfico.
O roteiro, por outro lado, se descola do filme ao ser publicado como obra singular de autoria exclusiva de Rowling, e por mais que sua conexão com a obra cinematográfica seja evidente, e ainda mais conter aspectos criativos que talvez nem sejam dela, o autor exclusivo da obra é Rowling. Animais Fantásticos e Onde Habitam: O Roteiro Original já pode ganhar seu lugar no canon da mitologia.
Criança Amaldiçoada
Harry Potter e a Criança Amaldiçoada teve uma história co-escrita por J.K. Rowling, com personagens do primeiro canon. E agora? Voltemos às leis: “obras de autoria exclusiva do criador da mitologia”. Resolvido: Criança Amaldiçoada pertence a um canon completamente desvinculado do canon original, por ter autoria compartilhada, assim como os filmes: o canon teatral, com Criança Amaldiçoada, de Rowling, Jack Thorne e John Tiffany.
O seu canon
A maleabilidade do canon é e sempre foi fonte de discordância entre quem dialoga sobre ele quando suas regras não são estabelecidas por entidades acadêmicas ou têm pouca importância além dos círculos que conhecemos como fandom. Compare ao cânone ocidental, que engloba pintura, literatura, música e toda forma de arte, que tem um conceito acadêmico estabelecido, apesar de continuar sendo debatido, por causa da sua evidente importância no estudo histórico da arte. No final das contas, em retóricas do fandom, cabe ao autor do discurso estabelecer o que é canon na sua retórica, para que o interlocutor possa então ter a mesma noção na qual você baseia seus argumentos, e assim tornar o diálogo inteligente.