J.K. Rowling postou hoje um texto no Twitter no qual discute sobre os paralelos que uma fã fez entre o mundo de “Harry Potter” e os conflitos na faixa de Gaza. Para entendermos o texto, no entanto, precisamos ficar a par de alguns eventos e acontecimentos do ano passado e do começo desse ano. Aqui compilamos as informações e a tradução integral do texto da autora.
Em fevereiro desse ano, o The Guardian publicou uma carta pública assinada por mais de 600 artistas na qual se propõe um boicote cultural a Israel, país que no ano passado foi responsável por uma operação militar na faixa de Gaza que deixou 2.200 mortos e 10.500 feridos, dentre estes 3.400 crianças. Veja um trecho da carta:
Estamos anunciando hoje que não vamos nos envolver em negócios relativos à cultura com Israel. Não vamos aceitar nem convites profissionais a Israel, nem fundos de empresas ligadas a seu governo.
No dia 22 de outubro, no entanto, o mesmo jornal veiculou uma nova carta pública que insiste que Israel precisa de pontes culturais, e não boicotes. Um dos acadêmicos e artistas que assinaram esta carta foi J.K. Rowling, e é aí que entramos no assunto. A carta lê:
Não acreditamos que boicotes culturais sejam aceitáveis ou que a carta publicada represente de forma acurada a opinião do mundo cultural do Reino Unido. Portanto, estamos escrevendo para declarar nosso apoio ao lançamento do projeto Culture for Coexistence.
O projeto citado na carta é uma network independente do Reino Unido que deseja informar e encorajar o diálogo sobre Israel na cultura de massa e na comunidade criativa, e a coexistência pacífica. Eles colocam o boicote cultural como uma atitude divisiva e discriminatória que não vai levar à paz, e reiteram que a meta é ter Israel e Palestina vivendo pacificamente, lado a lado, como duas nações distintas, em paz e segurança.
No mesmo dia da publicação da carta, a usuária e fã de Harry Potter Mia Oudeh publicou em seu perfil no Facebook uma carta à autora da série demonstrando seu descontentamento quanto à opinião expressa por ela na carta e dando sua opinião sobre o porquê dos artistas deverem ser contra o diálogo. Veja um trecho da carta de Mia:
Querida J.K. Rowling, sou sua fã ávida, e tenho lido continuamente seus livros de Harry Potter sem parar desde que tinha 11 anos. Minha casa inteira é cheia de coisas da série, e eu acabei de voltar de uma visita ao [parque] Mundo de Harry Potter […]. Sou obcecada por seus livros e me pego sonhando com eles – em particular a Batalha de Hogwarts, onde meu subconsciente me traz minhas próprias batalhas pessoais, mas uma batalha na qual acho que todos deveriam lutar. […] em resposta à sua carta, vou fazer paralelos entre o mundo de Harry Potter e o mundo palestino para demonstrar minha confusão. […] [Israel] é um Estado colonial que opera sob o apartheid de povos indígenas, tendo quebrado leis internacionais e resoluções das Nações Unidas todos os dias desde sua existência. […] Sugerir diálogo é tão absurdo quanto um trouxa entender a diferença entre um Comensal da Morte e um Nascido Trouxa. É como Válter Dursley balançar sua cabeça dizendo que a paz virá se Dino Tomas, cujo pai foi assassinado porque negou servir aos Comensais da Morte, e Antônio Dolohov se sentarem e “conversarem”. […]
Com a rapidez com a qual o texto de Mia se tornou popular, vários fãs criaram paralelos com o mundo de “Harry Potter”, e J.K. Rowling se sentiu na obrigação de comentar sobre o fato. O texto postado no Twitter na manhã de hoje (27) pode ser lido integralmente abaixo.
Por que Dumbledore foi à colina
Tradução: Igor Moretto
Recebi muitas mensagens nos últimos dias que usam meus personagens fictícios para fazerem pontos sobre o boicote cultural de Israel. Isso não é uma reclamação: os personagens pertencem aos leitores tanto quanto a mim, e cada um tem sua própria vida na cabeça de quem os lê. Às vezes, a vida interna de personagens que são imaginadas pelo leitor não são o que eu imaginei para eles, mas a graça da leitura é que fazemos nosso próprio elenco imaginário. Sempre gostei de ouvir sobre personagens de Potter que existem nas cabeças de pessoas além de mim.
Muitas das mensagens que recebi nos últimos dias incluíram variações do tema “diálogo não acabaria com a Guerra Bruxa” e é verdade que não. “Só” o diálogo não pararia a Guerra Bruxa como “só” o diálogo não parou. Voldemort acreditava que os não-bruxos eram sub-humanos, então é válido compará-lo a qualquer ser humano real que acredite que raça, religião ou sexualidade seja inferior. Seria de fato incumbência de um tolo tentar conversar com Voldemort ou Belatriz Lestrange para que deixassem suas varinhas pelo amor de seus companheiros humanos. Eles não têm amor nenhum para com a humanidade e eles queriam a dominação, não a paz.
Eu disse acima, e continuo dizendo, que todo leitor tem o direito de ter sua própria versão de meus personagens. Porém, há um ponto central na história de Potter que não é negociável: não podemos fingir que não está lá ou que não importa quando é um ponto crucial dos livros e, de várias maneiras, a chave da história. É também um ponto que, a meu ver (recebo muitas mensagens, então não posso jurar), se perdeu nas várias comparações de Israel com Comensais da Morte.
No último livro, Relíquias da Morte, quando várias coisas escondidas vêm à superfície, há uma cena em uma colina ventosa. Dumbledore foi chamado por um Comensal da Morte, Severo Snape. Nesse ponto, Snape é assinante da filosofia inumana de Voldemort. Ele é provavelmente um assassino, com certeza um traidor de duas das pessoas que Dumbledore mais amou, e o homem que enviou Voldemort atrás de uma criança sabendo que Voldemort a mataria.
De novo, a meu ver (minha memória não é infalível, então me desculpe se você perguntou), ninguém nunca me perguntou: por que Dumbledore foi quando Snape o chamou, e por que ele não o matou quando ele chegou lá?
Eu acho que os leitores entendem que Dumbledore é sábio o bastante, inteligente o bastante e tem bastante compaixão para sentir que Snape, apesar de ter tido uma vida adulta desprezível, ainda tenha algo humano dentro de si, algo que pode ser redimido. Mesmo assim, apesar de sábio e presciente, Dumbledore não é um vidente. Quando ele responde ao chamado de Snape, ele não sabe se Snape vai tentar matá-lo. Ele não pode saber se Snape vai ter a moral ou coragem de mudar seus planos, muito menos ajudar a derrotar Voldemort. Ainda assim, Dumbledore vai à colina.
Vou divagar um pouco aqui, mas há um ponto relacionado a isso que precisa ser feito. Entre as mensagens que fizeram paralelos entre os livros de Potter e Israel, há algumas que dizem que “Harry estaria desapontado” ou “Harry não entenderia” minha posição. Essas pessoas estão certas, mas só até um ponto específico. O Harry de seis livros e meio não entenderia. Harry é imprudente e bravo durante uma porção considerável desses seis livros e meio, e ele tem toda minha simpatia. Ele perdeu sua família, ele teve fardos colocados em si que ele nunca quis, e ele foi estigmatizado ao longo de toda sua adolescência por carregar uma cicatriz deixada nele por um assassino.
Há um momento no livro final que Harry, cuja inclinação natural é lutar, a se apressar à ação, a liderar, é forçado a parar e considerar a críptica mensagem que Dumbledore o deixou. Infelizmente, essa mensagem vai contra tudo que Harry acredita ser necessário para ganhar a guerra. Ele quer usar uma arma mortal contra Voldemort, mas Dumbledore pensou nas coisas para que, por mais que Harry saiba que essa arma existe, ele também vai suspeitar que pegar essa arma é a coisa errada a fazer. Harry não consegue entender por que a ação de “usar a arma” é perigosa, e mesmo assim – de má vontade – ele decide agir contra seu próprio instinto, e de acordo com o que ele acredita ser a vontade de Dumbledore. A decisão é desconfortável pra ele. Ele continua em dúvida até o momento no qual ele encontra Voldemort cara-a-cara pela última vez.
Diferente de Harry, Dumbledore não estava agindo contra sua própria natureza quando escolheu se encontrar com Snape na colina. Dumbledore, lembrem-se, não é uma figura política; o Ministério é fraco e corrupto, permitiu a ascensão de Voldemort e está fazendo um péssimo trabalho na luta contra ele. Dumbledore é um acadêmico e acredita que alguns canais de comunicação devem sempre se manter abertos. Foi verdade nos livros de Potter, e é verdade na vida real, que o diálogo não vai mudar mentes intencionalmente fechadas. No entanto, o curso da minha guerra fictícia foi mudada para sempre quando Snape escolheu abandonar o curso no qual ele estava, e Dumbledore o ajudou. A parceria deles foi uma parceria que, se não existisse, faria com que a vontade de lutar de Harry não fizesse sentido.
Os palestinos sofreram incontáveis injustiças e brutalidades. Quero ver o governo israelita ser responsabilizado por essas injustiças e brutalidades. Boicotar Israel em todos os lados é fascinante. Satisfaz a vontade humana de fazer algo, qualquer coisa, frente ao horror do sofrimento humano.
O que é desconfortável pra mim é que acabar com o contato com as comunidades culturais e acadêmicas de Israel significa negar contato com israelitas que são pró-palestinos, e críticos do governo de Israel. Essas vozes são vozes que eu queria que fossem amplificadas, não silenciadas. Um boicote cultural coloca barreiras imóveis entre artistas e acadêmicos que querem conversar entre si, entender uns aos outros e trabalhar lado a lado pela paz. Acredito no poder de projetos como esse http://ow.ly/TSYCp, esse http://ow.ly/TSZYx e esse http://ow.ly/TSYik. Acho trágico quando pesquisas médicas como essa http://ow.ly/TSYoD são impedidas.
Eu genuinamente não acho ruim quando me mandam contra-argumentos com termos relacionados aos livros de Potter. Todo livro que lida com a moral pode ser pego e usado para ilustrar temas que sirvam na perspectiva do argumentador. Posso só dizer que toda uma discussão de moral dentro da série é impossível sem se examinar as ações de Dumbledore, por que ele é o coração moral dos livros. Ele não considerou todas as armas iguais e ele estava preparado, sempre, para ir à colina.