Harry Potter

O lobo inofensivo e a sangue-ruim nas metáforas do HIV em Harry Potter – Opinião

Montagem com duas fotos: uma de Lupin, no filme Prisioneiro de Azkaban, e outra de Hermione, em Relíquias da Morte: parte 1.

Há, em Harry Potter, relações não ditas entre os personagens que continuam a se dizer nas entrelinhas, nos arcos de cada personagem, no silêncio das intenções, nas rubricas dos gestos. Harry Potter não é, definitivamente, uma leitura para o público infanto-juvenil e vem a lançar luz em questões relevantes.

O capítulo dezoito de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban nos apresenta a história de Remo Lupin, um homem condenado a ficar recluso na Casa dos Gritos por, desde muito cedo, ter de conviver com a “licantropia”. O nome está longe de ter sido criado por J.K. Rowling. Licantropo ou lobisomem é alguém que se metamorfoseia, sempre à lua cheia, em um ser peludo, com reações primitivas, tomando as feições de um lobo.

A figura do lobisomem remonta à antiguidade clássica até a cultura pop. Na lenda de Licaão, condenado a virar lobo por Zeus, após ter cozinhado carne de um escravo. Jacob Black, de Crepúsculo, é um licantropo que disputa as atenções de Bella com Edward, um vampiro. Na nossa cultura popular, existem vários motivos para a licantropia: uma muito conhecida é que a propensão a ser lobisomem aumentaria no sétimo filho homem consecutivo (o que efetivamente – quase – acontece com Gui Weasley em Harry Potter); em outras associa-se a bebês não batizados e a encruzilhadas.

No mesmo capítulo, a história de Lupin é contada após Harry, Rony e Hermione chegarem à Casa dos Gritos, casa tida como mal-assombrada na Escócia ficcional. Nela, o trio tem um embate com, além de Sirius Black (metamorfoseado em cão), Remo Lupin (que salva Rony do cão), Peter Petigrew (em forma de animago) e Severo Snape (por baixo da capa de invisibilidade).

É neste ponto da história que os arcos de Hermione e Lupin se encontram, aqui levemente sugeridos por um embate de uma aluna que descobriu que o professor é um lobisomem ao pesquisar para uma redação do professor Snape; e de um homem licantropo em busca da sua absolvição de um crime que não cometeu – um crime menos aparente que o de Sirius Black, mas tão violento quanto. Recapitulemos a história dos dois.

Separador de texto com um desenho de lobo.

Remo Lupin nasceu em 10 de março de 1960. Filho de Lyall Lupin e Hope Lupin. Após Lyall, auror do Ministério da Magia, insultar Fenrir Grayback por sua condição de lobisomem, este mordeu seu filho, Remo, ainda bebê. Seus pais fizeram de tudo, em vão, para conseguir a cura para a licantropia do filho. É, finalmente, o duplo Snape que consegue uma poção que conseguisse controlar a condição.

Eu ainda era garotinho quando levei a mordida. Meus pais tentaram tudo, mas naquela época não havia cura. A poção que o Prof. Snape tem preparado para mim é uma descoberta muito recente. Me deixa seguro, entende. Desde que eu a tome uma semana antes da lua cheia, posso conservar as faculdades mentais quando me transformo… e posso me enroscar na minha sala, um lobo inofensivo, à espera da mudança de lua.

Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, “Aluado, Rabicho, Almofadinhas e Pontas”, p. 284.

No trecho acima, Lupin é encarado com certa passividade após o manejo dos seus sintomas. A autora usa expressões como “inofensivo” e “à espera” para falar de um Lupin curado das suas pulsões licantropas. A vida de Lupin não foi fácil. O personagem revela que só conseguira matricular-se através de Dumbledore, que se compadeceu. Hogwarts o acolheu sob uma condição: que mantivesse a Casa dos Gritos como morada, para desviar de ataques e dos olhos alheios.

A Casa dos Gritos nunca foi mal-assombrada… Os gritos e uivos que os moradores do povoado costumavam ouvir eram meus. (…) [Dumbledore] me admitira em Hogwarts quando garoto, e me dera um emprego quando eu fora desprezado toda a minha vida adulta, incapaz de encontrar um trabalho remunerado porque sou o que sou. Esta casa (…) e o túnel que vem até aqui foram construídos para meu uso. Uma vez por mês eu era trazido do castelo para cá, para me transformar. A árvore foi colocada na boca do túnel para impedir que alguém se encontrasse comigo durante o meu período perigoso.

Ibidem, “Aluado, Rabicho, Almofadinhas e Pontas”, p. 285.

Separador de texto com um desenho de lobo.

Hermione Jean Granger nasceu em 19 de setembro de 1979. Era uma nascida-trouxa, ou seja, de pais não-bruxos. O nome de seus pais permanecem um mistério, sendo chamados de Sr. e Sra. Granger. Vê-se o quanto a forma com que os pais de Hermione são tratados denota a importância que os não-bruxos têm: nenhuma. Como Harry, Hermione descobriu no seu aniversário de onze anos que fora selecionada para a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Apesar de todo o demérito pela comunidade bruxa, Granger se destaca como uma aluna brilhante (às vezes um pouco chata); se torna defensora do F.A.L.E (Fundação de Apoio à Libertação dos Elfos Domésticos). Durante a sua história, Granger é recorrentemente chamada de mudblood (sangue-ruim) e acusada de ter nascido com o sangue de seus pais, trouxas. Novamente, a história da culpabilização por um crime não cometido.

No decorrer da história, Hermione começa em uma postura hostil em relação à Lupin. 

Harry, não confie nele, ele tem ajudado Black a entrar no castelo, ele quer ver você morto também… ele é um lobisomem!

Ibidem, “Gato, rato e cão”, p. 278.

Percebamos, porém, que no diálogo entre Hermione e Remo não há uma alteração de voz, não há um grito, nem uma reação de desespero por parte dos personagens. Hermione é apresentada em voz baixa; a fala de Lupin retratada com tranquilidade.

—  Há séculos — sussurrou Hermione — Desde a redação do prof. Snape…

—  Ele ficará encantado — disse Lupin tranquilo. — Passou aquela redação na esperança de que alguém percebesse o que significava os meus sintomas. Você verificou a tabela lunar e percebeu que eu sempre ficava doente na lua cheia? Ou percebeu que o bicho-papão se transformava em lua quando me via?

—  Os dois — respondeu Hermione em voz baixa.

Ibidem, “Gato, rato e cão”, p. 278.

 

Mais adiante, compara-se a feição de Lupin à uma reação impassível diante de uma pergunta casual em sala de aula sobre grindylows (p. 283).

A reticência com que os dois dialogam parece revelar mais do que um dialogo tenso entre a menina cdf que sabia mais do que devia e um professor desapontado com a postura da aluna, ou, ainda, uma postura de reverência a um professor. Antes, a falta de exaltações parece revelar uma empatia velada entre um personagem licantropo, lobo inofensivo, e uma menina considerada sangue-ruim pelos colegas de turma e pela sociedade bruxa.

Para entendermos melhor sobre essa relação, precisamos passar ao capítulo 29 de Harry Potter e o Enigma do Príncipe, “O lamento de fênix”, em que Lupin, Tonks, Gui e Fleur conversam no hospital bruxo St. Mungos. Este capítulo se dá após Gui ter sido mordido pelo mesmo Fenrir Grayback que mordera o menino Lupin. Ao observar Gui e Fleur falando sobre a licantropia, Tonks e Lupin iniciam uma conversa acalorada sobre a sua condição.

— Está vendo — exclamou com a voz cansada. Tonks olhava aborrecida para Lupin — Ela ainda quer casar com Gui, mesmo que ele tenha sido mordido! Ela não se incomoda!
— É diferente — respondeu Lupin, quase sem mover os lábios, parecendo subitamente tenso. — Gui não será um lobisomem típico. Os casos são diferentes.
— Mas eu também não me incomodo, nem um pouco! — retrucou Tonks, agarrando Lupin pela frente das vestes e sacudindo-o. — Já lhe disse isso um milhão de vezes…

Harry Potter e o Enigma do Príncipe, “O lamento da fênix”, p.489.

Hermione sem dúvida é também, em alguma medida, um incômodo, como o seu antigo professor de Defesa Contra as Artes das Trevas. Isto, sem dúvida, gerará uma empatia entre os personagens, representada em Harry Potter e as Relíquias da Morte, quando a menina fica sabendo sobre a gravidez de Tonks, tendo uma resposta ao avesso:

— Remo — disse Hermione hesitante — tá tudo bem, hum, entre você e…
— Está tudo bem, obrigado — disse Lupin encerrando o assunto. Hermione ficou vermelha. Houve outra pausa, estranha e embaraçosa, e depois Lupin disse, forçando-se a admitir algo desagradável,
— Tonks está grávida.
— Oh, que maravilhoso! — disse Hermione num tom meloso.
— Excelente! — disse Rony entusiasticamente.
— Parabéns — disse Harry.

Harry Potter e as Relíquias da Morte, “O suborno”, p. 169.

Separador de texto com um desenho de lobo.

Mas, afinal, o que Lupin tem de tão similar com Hermione?

A aproximação de Hermione parece indicar, mais de uma vez na história, que os arcos se cruzam sem se deixarem anunciar claramente por meio de diálogos. E isto se dá, efetivamente, pelas ideias de não-acolhido, deslocado, isolado, rejeitado, incômodo perpetuadas pelas histórias dos personagens.

Ainda assim, há uma metáfora mais abaixo da superfície: Hermione é tratada como sangue-ruim pela sociedade bruxa. Remo é visto como um monstro violento, o lobo solitário transformado em inofensivo por causa da poção. O portador de uma condição incurável, ao qual só o isolamento pode poupar o preconceito.

A história entre os dois personagens ressoa numa história do nosso mundo trouxa, acontecida não há muitos anos atrás. Recentemente, a condição de Remo Lupin tem sido associada a pessoas soropositivas, que vivem com o HIV e a AIDS.

Em 1999, pouco mais de uma década após a pandemia de AIDS, o isolamento imposto às pessoas, suas “Casas dos Gritos”, não era tão evidente quanto hoje é, depois de tanto debate acerca do assunto. O preconceito à pessoas soropositivas tem até nome: sorofobia. Apesar das recentes e pavorosas polêmicas da transfobia da autora, talvez um dos méritos possíveis de sua obra seja ter sintonizado uma geração no isolamento e preconceito vivido por estes dois personagens. Hermione e Lupin são, assim, tratados tal qual os LGBT+ o eram fortemente, como grupos de risco. Sabe-se que a medicina da época elencava, erroneamente, um grupo de 5 “H”. Eram os hemofílicos, homossexuais, pessoas que usassem heroína, profissionais do sexo (hookers) e os haitianos.

A medicina em 1999, na época da publicação de Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban já era outra, mas apesar disso, o mundo de Harry Potter devia uma resposta à altura, assim como o devia quando falou de fascismo (Salazar Slytherin) para crianças. São os licantropos e sangue-ruins os mais condenados a serem isolados socialmente. 

Hoje em dia, temos tratamentos que impedem a transmissão do vírus HIV, tais como a descoberta de que a pessoa soropositiva com menos de 40 cópias/ml de sangue sequer transmite o vírus: o chamado indetectável. Há também a profilaxia pré exposição, medicamento que, se tomado regularmente por pessoas soronegativas, impede o contágio pelo vírus.

Mas ainda há muito a se dizer. Há algo que indetectabiliza também socialmente essas pessoas, o que não chega a ser algo bom. Nesse sentido, as imagens de passividade são sucessivas e muitas. Lupin é permeado por um discurso de estar “à espera”, de ser “lobo inofensivo”, de um “lobisomem típico”, um risco ao outro. Já em Hermione, além do mudblood, há ideias de apagamento do passado trouxa, sujo. O passado, aliás, é uma constante nas narrativas sobre o HIV. Susan Sontag (que me mataria por esse texto), em Aids e suas metáforas, revela que:

[A sexualidade] não pode mais ser encarada como uma simples relação a dois: é toda uma cadeia, uma cadeia de transmissão, vinda do passado. Assim, lembre-se de que quando uma pessoa tem relações sexuais com um parceiro, não é só com esse parceiro que ela está tendo relações, e sim com outras pessoas que tiveram relações com esse parceiro nos últimos dez anos.

Susan Sontag. A doença como metáfora – AIDS e seus metáforas, p. 134.

Portanto, não é ingenuamente que o próprio nome dos pais da menina é apagado da narrativa. Poderíamos pensar que se trata apenas de uma questão de sigilo por conta dos pais serem trouxas, mas, tendo em vista seu passado, a imagem do feitiço da memória toma outra dimensão. Mas a sexualidade, assim como o não-ser-bruxo no mundo de Harry Potter é visto, socialmente, como algo a ser apagado, principalmente de corpos soropositivos e trouxas.

Nos primeiros minutos de Harry Potter e as Relíquias da Morte — parte um (cena acima), a menina, de voz trêmula, aparece lançando um feitiço que apaga a memória dos pais (obliviate). É a essa atitude que muitos dos soropositivos precisam se submeter: apagar o passado. Muitos outros precisam se submeter a perguntas como: “Como você pegou esse vírus?”, “quem te passou o vírus?”. Essa ideia preconceituosa da transferência vinda do passado faz a sociedade pressupor, nestas pessoas, sempre uma atitude resignada, vitimista e passiva, às vezes até permitindo ser criminalizado e apontado pelo simples fato de conviver com o HIV, ser licantropo, ser trouxa, ser sangue-ruim. É como diz Válter Dursley na cena abaixo, “it’s not safe for us here anymore, algo como, “Não é mais seguro para nós ficarmos aqui”. E não tem sido mesmo. Soropositivos, Hermiones e Lupins, mudbloods e licantropos são, não grupos de risco, mas grupos em risco, numa sociedade ainda preconceituosa.

Separador de texto com um desenho de lobo.

Há outro caso que a poção que torna Lupin inofensivo revela. A medicina, tanto no mundo de Harry Potter quanto no nosso, dispondo de uma tecnologia de manutenção da vida de pessoas soropositivas, também é passível de preconceitos. Não é incomum o relato de pessoas soropositivas que sofrem preconceito dos próprios profissionais de saúde. No plano da linguagem, ainda usamos metáfora de guerra. Não à to, o termo que ainda se usa – erroneamente – para o dia 1ª de dezembro é “dia da luta mundial contra a aids”.

Como Susan Sontag escreve,

O corpo não é um campo de batalha. Os doentes não são baixas inevitáveis, nem tampouco são inimigos. Nós – a medicina, a sociedade – não estamos autorizados a combater por todo e qualquer meio… Em relação a essa metáfora, a metáfora militar, eu diria, parafraseando Lucrécio: que a guardem os guerreiros.

Ibidem, p. 151.

Não há guerreiros quando se fala de HIV, licantropos e sangue-ruins. Há pessoas e personagens que sofrem todo o tipo de preconceito e estigma e querem, a partir das suas narrativas, dos seus óculos mágicos de Luna Lovegood, exercer o seu direito de viver com dignidade médica, sexual e afetiva; e, principalmente, não ser coagido a sentir pavor do seu passado.

Pessoalmente, a cena que mais me emociona nos filmes de Harry Potter, junto com a cena do obliviate, é aquela em que Hermione é torturada por Bellatrix Lestrange na mansão dos Malfoy (em Harry Potter e as Relíquias da Morte – parte dois, vídeo abaixo). Essa é, ainda, uma apoteose dentro dos filmes de “Harry Potter” do que possa refletir e condensar, ainda que sem palavras, sobre preconceito contra soropositivos. Créditos a David Yates. Apesar de termos nossos corpos marcados e torturados pela inscrição preconceituosa do mudblood, do inadequado, do promíscuo, do licantropo inofensivo, nós somos corpos possíveis, corpos legítimos, corpos capazes de amar e sentir prazer. Em Harry Potter e o Enigma do Príncipe (2009), Yates, infelizmente, ficou nos devendo o diálogo relatado acima, entre Tonks e Lupin no St. Mungos.

Todos nós, invariavelmente, temos, dentro de nós, um pouco do receio de lobo inofensivo de Lupin; e um pouco da coragem de Granger. Diferentemente da Casa dos Gritos, a relação entre os dois personagens é silenciosa, para não dizer velada. Nem por isso, entretanto, deixa de ressoar. Apesar de não haver muitas palavras para expressar a relação entre a soropositividade, a licantropia e a não-magia, há palavras mágicas se insinuando, no silêncio do que é muito mais do que uma relação de professor e aluna.

Separador de texto com um desenho de lobo.

Referências

SONTAG, Susan. A doença como metáfora – Aids e seus metáforas. Tradução: Rubens Figueiredo/Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.
ROWLING, J. K. Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban. Tradução: Lia Wyller. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
ROWLING, J. K. Harry Potter e o Enigma do Príncipe. Tradução: Lia Wyller. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
ROWLING, J. K. Harry Potter e as Relíquias da Morte. Tradução: Lia Wyller. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

Sobre o autor

Fernando Impagliazzo

Fernando é potterhead, lufano, poeta, professor, pesquisador, ex-redator do ScarPotter e editor da revista Toró. Autor de Prova das nove (2014) e Promíscuo (a ser lançado).