Um ano depois dos tweets transfóbicos de J.K. Rowling e da subsequente publicação do ensaio TERF wars, a Folha de São Paulo divulga os resultados de uma pesquisa de mercado que mostra que a autora foi a mais vendida do Brasil em 2020. Segundo a Nielsen, empresa que conduziu essa pesquisa, Rowling vendeu meio milhão de exemplares de suas obras no ano passado. Foram considerados na pesquisa os títulos de “Harry Potter”, que representam 99% das vendas, Morte Súbita, Vidas Muito Boas, e O Ickabog. Alguma coisa deu errado.
Este é um artigo de opinião.
Venho refletindo sobre como o fandom e o público geral lidaram com o “problema Rowling” desde o começo e, hoje, com a prova de que um boicote não funcionou, achei importante analisar as táticas que fizeram com que essa polêmica não tenha sido relevante para o consumidor brasileiro, como afirma o analista Fábio Borges, da Escola Superior de Propaganda e Marketing, entrevistado pela Folha.
É difícil saber se as pessoas não ficaram sabendo ou se não se importam, mas essa polêmica não foi relevante para o consumidor brasileiro.
No Animagos, eu e outros membros da equipe fizemos um episódio do nosso podcast tentando explicar o movimento britânico ao qual Rowling parece ter se associado, o dos “críticos de gênero”. Tentamos desenhar o contexto político e cultural por trás do primeiro tweet da autora que causou apreensão, e explicar como se deu a transfobia, não numa tentativa de passar pano, mas de garantir que qualquer pessoa pudesse entender.
No hoje infame tweet, Rowling demonstra apoio a Maya Forstater, que trabalhava no Center of Global Development, em Londres. A organização decidiu não renovar seu contrato depois de reclamações envolvendo tweets e posições transfóbicas no trabalho.
Dress however you please.
Call yourself whatever you like.
Sleep with any consenting adult who’ll have you.
Live your best life in peace and security.
But force women out of their jobs for stating that sex is real? #IStandWithMaya #ThisIsNotADrill— J.K. Rowling (@jk_rowling) December 19, 2019
O episódio do podcast foi recebido muito bem pelos ouvintes, já que até aquele ponto havia ainda muita confusão sobre como e onde estava a transfobia no texto. Havíamos passado alguns anos especulando sobre likes e pessoas estranhas na lista de pessoas que Rowling seguia, mas agora havia uma confirmação de que aquilo era uma posição ideológica.
Eu acreditei de verdade que aquela era uma oportunidade importante para debater vidas trans, conceitos da teoria de gênero e queer, e até certo ponto foi. Até que chegou o “cancelamento”.
Cancelamento
Podemos passar anos discutindo se o “cancelamento” é só uma invenção dos opressores em resposta à prestação de contas quanto a posições e falas erradas, mas é bom lembrar que esse conceito, apesar de ter ganhado esse nome recentemente, não é um fenômeno novo. Deixo aqui, como fiz no episódio do podcast, o vídeo da youtuber Natalie Wynn sobre o assunto. Recomendo fortemente.
O cancelamento transformou o assunto em um tabu tão grande, ao passo que parecia não haver qualquer meio termo entre “J.K. Rowling é a pior pessoa do mundo” e “J.K. Rowling nunca errou”. Esse clima está entre nós até hoje, e as pessoas que o mantém parecem não perceber quão negativa é essa abordagem para a questão trans e não binária.
Na ocasião do ensaio, por exemplo, não houve a mesma recepção positiva que recebemos com o podcast, quando um dos nossos membros afirmou ter achado o texto “respeitoso”. A interpretação subjetiva de um artigo que pretendia contextualizar o ocorrido foi considerada evidência de um crime inafiançável: o de passar pano, e a punição veio.
Os ataques que recebemos foram tão desproporcionais ao suposto crime, que nos fizeram questionar se realmente deveríamos continuar a escrever sobre a série, e fomos obrigados a escolher entre ficar quietos ou ser acusados de transfobia por associação. Como os pressupostos binários do “Rowling-monstro versus Rowling-rainha” não são nem um pouco interessantes, no meu ponto de vista, segui pensando muito sobre o assunto.
As coisas pioraram quando Rowling anunciou o quinto livro de “Cormoran Strike”, Sangue Revolto, onde um dos suspeitos usa “roupas femininas” em uma tentativa de rapto. Publicamos um esclarecimento no Twitter contrapondo algumas manchetes sensacionalistas como a do Canaltech: “Criadora de Harry Potter revolta web com novo livro sobre serial killer travesti“, e nosso crime ganhou novas evidências e a punição se intensificou. Mas eu li o livro, e se você quiser saber da minha opinião sobre essa problemática, pode ler a resenha aqui.
É claro que me foi negada a oportunidade de explorar o tabu em lugares como o Twitter e o Reddit, mas felizmente tenho amigos que me deram o espaço e a compreensão necessários para tal. Fui ajustando minha percepção ao longo do tempo, ao passo que hoje me sinto muito mais confortável com as minhas conclusões, o que nos traz às minhas críticas.
Deu ruim
Como podemos constatar também no vídeo da Natalie citado acima, a biologização das pessoas trans e não binárias não é consenso nem mesmo dentro da comunidade trans, e, se tem uma coisa que eu aprendi durante todo esse tempo em que eu venho lendo e ouvindo pessoas trans que discutem a teoria de gênero e queer, é que nada está escrito em pedra, e que as pessoas trans e não binárias não são um monolito. Mas essa complexidade foi jogada fora aqui.
Pessoas que parecem comungar de um ativismo LGBT liberaloide usam dogmas como “privilégio” e “lugar de fala” como moeda do capital social que as dinâmicas das redes sociais criaram e, a cada dia mais, estimulam. Transformaram a transfobia de Rowling num problema simples e pessoal, para o qual a única resposta é o repúdio e o boicote.
Boicote
O cancelamento é mercadológico e capitalista e, por isso, roga pelo boicote. A simplificação e essencialização da “transfobia” na persona de J.K. Rowling é nada mais do que uma técnica de marketing. O cancelador é incentivado a seguir os dogmas liberais em detrimento de uma hipotética análise e a possibilidade de diálogo, que, em questão de práxis, é muito mais benéfico para todos. Infelizmente, com essa lógica, não ganhamos nada.
Não ganhamos nós, já que sites como Papel Pop, Gayblog, CinePop e Pink News não poderiam ficar mais regozijados com esse cenário. Os gatilhos emocionais causados pela situação e a personificação da transfobia em J.K. Rowling são ferramentas muito eficazes na geração de likes, cliques e dinheiro. E a gente caindo. Até em mentiras.
A Folha de São Paulo, por exemplo, publicou informações falsas em uma matéria de capa chamada “Entenda como ‘Harry Potter’ se tornou um estorvo para Hollywood”. Eles afirmam, sem mais nem menos, que J.K. Rowling revelou a sexualidade de Dumbledore depois das estreias dos filmes da saga para se proteger da repercussão negativa. Qualquer fã sabe que isso não é verdade. A revelação foi feita em 2007, quatro anos antes da estreia do último filme, em resposta a uma fã no evento de lançamento de Harry Potter e as Relíquias da Morte. A reação do público foi tão positiva que fez a autora declarar que “se soubesse, teria revelado isso antes”.
Todo dia surge um novo problema que alguém encontrou em “Harry Potter” e que vem para acrescentar na lista dos incontáveis defeitos morais de J.K. Rowling. Não importa se é verdade, se é falacioso, se é exagerado. Aposto que você já ouviu dizerem que duendes são representações ofensivas do povo judeu, ou que a escravidão dos elfos-domésticos é um paralelo com a falsa (e racista) noção do “bom escravo”. O par de dança Hermione e Krum foi até acusado de apologia à pedofilia.
Existe todo um universo paralelo na cabeça dos canceladores que parece ter origem em delírios doentes de ódio. É falso que Rowling seja antissemita, basta ler seus livros ou os INFINITOS TWEETS que Rowling fez e faz contra o antissemitismo; os elfos-domésticos nunca foram associados pela autora à escravidão de seres humanos, e não consigo nem calcular o tamanho do esforço que a pessoa precisa fazer para enxergar pedofilia num relacionamento entre dois adolescentes.
“Harry Potter” tem problemas de verdade que podem ser discutidos. A gordofobia constante na descrição dos Dursley é a que mais me salta à mente. A estereotipização de nacionalidades e etnias também é passível de críticas. E fazemos.
No podcast A Casa Elefante, um podcast no qual relemos “Harry Potter” capítulo a capítulo, comentamos de forma crítica e equilibrada a série, sem exageros. Falamos sobre a relação do estigma dos lobisomens com o das pessoas com HIV em Prisioneiro de Azkaban, sobre abuso de animais em Cálice de Fogo, e no decorrer da politização da série tenho certeza de que as discussões se tornarão mais complexas a cada episódio, e seguiremos conversando com calma e reconhecendo o valor do que está em volta desses problemas.
Repúdio
Outro aspecto que preciso mencionar aqui é a culpabilização gerada por essas campanhas de cancelamento que tratam o repúdio como outra moeda do capital social. Se você comprar um livro de J.K. Rowling, por exemplo, está automaticamente FINANCIANDO A TRANSFOBIA. Se você mencionar Rowling em seu vídeo no YouTube sem fazer uma ressalva e declarar que é de conhecimento geral que ela é transfóbica, você é CONIVENTE e FACILITADOR.
Maxwell Meyer, num editorial no jornal The Stanford Review narra:
“Quando voltei para Stanford na semana passada, depois de um ano, sorri quase como uma criança quando vi o letreiro da Lufa-lufa com meu nome. […] Mas como pude constatar, escolher uma série de fantasia infantil como tema para um dormitório universitário em 2021 é território perigoso. […] fiquei completamente desorientado quando um membro da equipe dos estudantes leu a declaração a seguir durante nossa primeira reunião virtual do dormitório:
“‘Queremos deixar claro que J.K. Rowling fez muitas declarações transfóbicas, antissemitas e racistas no último ano. Suas crenças não refletem nossos valores enquanto casa, e queremos deixar claro que não vamos tolerar comentários como os dela neste dormitório. Nosso tema pretende transformar o espaço num lugar seguro e divertido para você neste bimestre.’”
O clima de guerra aprofunda cada vez mais o tabu que envolve o assunto, e tem o único resultado de constranger. Constrangimento usado como técnica de angariar mais adeptos das táticas falidas do boicote e repúdio, que então se retroalimentam através da lógica mercadológica do cancelamento.
Num mundo perfeito, a gente teria usado essa oportunidade para conversar sobre as vidas das pessoas trans e trocado argumentos e experiências, e não acusado a Dona Alzira, que comprou um livro de “Harry Potter” pro seu sobrinho, de financiadora de transfobia. Talvez, num mundo perfeito, a gente até tivesse conseguido fazer a Rowling aceitar um diálogo. Tentamos impor um ideal sem considerar se o caminho do diálogo estava se abrindo ou se fechando.
Eu acredito, e até pode ser ingenuidade minha, que se não fosse esse clima, talvez a Rowling não tivesse se sentido vitimizada a ponto de reforçar seus preconceitos. E se, ao invés de entrarmos em negação ou em frenesi, tivéssemos tentado conversar com ela quando os primeiros likes e follows foram feitos? Não tenho como garantir que o resultado seria outro, mas relatos de outras pessoas “canceladas” apontam ele como um dos motivos para o reforço das ideias iniciais. Fechamos as portas.
Mas nem tudo são espinhos. As pessoas menos emocionadas conseguiram, através de conteúdos parecidos com nosso episódio de podcast, criar um ambiente tolerante de aprendizado. A youtuber Jessie Gender, por exemplo, fez diversos vídeos sobre o assunto de um ponto de vista humanista, focando na pessoa de J.K. Rowling. O Council of Geeks falou sobre a diferença entre a “transfobia” e “racismo” e os problemas do essencialismo de acusações como “transfóbica” e “racista”. Atores de Harry Potter falaram sobre aspectos que discordam da retórica da autora, sem antagonismo e de forma educativa.
Apesar da guerra moral travada majoritariamente em trincheiras virtuais, não saímos de mãos vazias. O paradoxo da guerra moral é a revelação de que o erro não reside em qualquer “lado”, mas na guerra em si, que tem como rival a nuance, a leveza e a possibilidade de mudar, de evoluir. É difícil evoluir enquanto a evolução acontece, e na velocidade em que acontece hoje. Cabe a nós, os que amam e os que odeiam, os que se ofenderam e os que aplaudiram, todos nós, a difícil tarefa que este texto pretende provocar: a de estender a mão a quem não sabe seguir.