É impossível analisar “Harry Potter” em 2021 sem ter as recém polêmicas geradas por posições transfóbicas da autora J.K. Rowling assombrando nossas interpretações, e por mais anacrônico que isso seja, ao mesmo tempo traz discussões muito interessantes, e, como não poderia deixar de ser diferente, inconsistentes em tese.
Não é uma crítica nova, mas com o recente cancelamento da pessoa que sempre ilustrou a autoria da saga de forma bem presente, ela foi incorporada ao seu compêndio de pecados: o racismo.
É comum ver gente falando sobre como “Harry Potter” é racista por manter os personagens negros em segundo plano, como “Harry Potter” é racista por não pressupor a mesma estrutura racista do mundo real na sociedade bruxa, e como “Harry Potter” é racista por propor discussões sobre escravidão sem deixar paralelos explícitos.
A questão da escravidão dos elfos-domésticos, inclusive, é analisada de uma forma tão artisticamente limitadora e objetiva que acaba fazendo com que a crítica à lógica liberal do trabalho entre por um ouvido e saia pelo outro. Mas vamos fazer um texto sobre isso depois… Voltemos ao racismo.
Rita Von Hunty fez recentemente um vídeo sobre o conceito de “humanidade”, onde discorre sobre como a sociedade sempre usou do racismo para subalternizar e marginalizar o “outro”, tendo como base um conceito idealista de humanidade. Inclusive ela cita “Harry Potter” no vídeo, o que nos deu o estalo para escrever o artigo que você lê.
Não é que antes não houvesse motivo para analisar essa perspectiva, mas levando em conta que estamos terminando a releitura de um dos livros onde Rowling tenta mais explicitamente escrever sobre racismo, no podcast A Casa Elefante, não há momento melhor! Então veja o vídeo de Rita e se delicie com sua voz de vovó dos anos 50 enquanto aprende.
Em resumo, Rita menciona o fato de, na Inglaterra, haver um preconceito racial que ainda existe na ideologia vigente que vitimiza as pessoas ruivas por causa de um processo de desumanização dessa população que, como muito bem referenciado no vídeo, serviu para subjugar o povo irlandês.
Veja o que o religioso e aristocrata Geraldo de Gales disse, depois de uma visita à Irlanda:
“Eles utilizam seus campos para pasto. Pouco é cultivado e menos ainda é semeado. O problema aqui não é a qualidade do solo, e sim a falta da indústria por parte daqueles que deveriam cultivá-la. Essa preguiça significa que os diferentes tipos de minerais com os quais a terra está cheia não são minados ou explorados de qualquer forma. […] Dedicados apenas ao prazer e à preguiça, são pessoas realmente bárbaras. Eles dependem de animais para sua sobrevivência e vivem como animais.”
Em “Harry Potter”, vemos o reflexo da marginalização das pessoas ruivas no fato da família Weasley ser pobre e estigmatizada por personagens como Draco Malfoy e outros ideólogos da pureza de sangue como Dolores Umbridge, que representam a classe dominante e racista, mas esse é um reflexo da estrutura da sociedade na qual o leitor se situa (trouxa), portanto pode acabar sendo apenas um aspecto narrativo descritivo, e não é uma crítica muito evidente.
Agora comparemos as aspas acima, de Geraldo de Gales, ao “relatório” que Dolores Umbridge faz sobre o gigante Hagrid em Harry Potter e a Ordem da Fênix (p. 416-418, ed. 2020). Atente-se ao tom e aos critérios arbitrários pressupostos.
“Tem de recorrer a grosseira gesticulação. Parece esquecer o que estava dizendo. Manifesta prazer à ideia de violência. Os alunos se sentem demasiado intimidados para admitir que têm medo.”
Toda semelhança não é mera coincidência. Rowling escolheu Hagrid e as outras criaturas “mestiças” – cujos pais se constituem de casais de um bruxo com uma criatura mágica, para representar as pessoas racializadas no mundo bruxo. Esse paralelo um pouco mais complexo cria situações ainda mais evidentes, por causa de um detalhe: as criaturas mágicas têm traços que o leitor traduz como “humanos”.
Rowling utiliza a empatia do leitor pela humanidade dos personagens racializados para comentar subtextualmente o absurdo do discurso racista. É um absurdo que se traduz perfeitamente ao absurdo do mesmo tipo de discurso que vemos na nossa sociedade trouxa, mas ao qual já estamos estruturalmente e socialmente anestesiados.
Obviamente, construir uma narrativa anti-racista não dá passe livre para autores serem racistas à vontade, mas precisamos diferenciar o racismo estrutural, causa de coisas como a ausência de personagens racializados na escala de protagonistas da história, de um suposto racismo conceitual.
No conceito, Harry Potter é (e sempre foi) uma obra anti-racista por excelência. Hagrid não representa apenas uma figura mitológica apartada da nossa organização em sociedade, assim como as pessoas negras não são as únicas que representam a população sujeita ao racismo na nossa realidade. Hagrid e a ideologia sangue-purista estão ali representando o racismo, que na nossa sociedade é também contra diversos tipos de pessoas, e isso não enxerga quem tem preguiça de interpretar a subjetividade do texto e da realidade.