Depois da publicação de seu diário e do livro Harry Potter e a Câmara Secreta, Jo Rowling escreveu uma pequena autobiografia focada em sua infância, adolescência e vida adulta antes de “Harry Potter”, intitulada “A Nem Tão Especialmente Fascinante Vida Até Agora de J.K. Rowling”. Este é o segundo texto das nossas traduções históricas especiais dos conteúdos de Jo Rowling.
A Nem Tão Especialmente Fascinante Vida Até Agora de J.K. Rowling
Traduzido e revisado por Igor Moretto
Nasci no Hospital de Chipping Sodbury, o que acho apropriado pra alguém que coleciona nomes engraçados. Minha irmã, Di, nasceu só dois anos depois, e foi a pessoa que sofreu minhas primeiras tentativas de contar histórias (eu era muito maior que ela e podia segurá-la). Coelhos apareciam em bandos em nossas sessões de histórias; a gente queria muito um coelho.
Di ainda lembra de mim contando uma história para ela na qual ela caía num buraco de coelho e era alimentada de morangos pela família de coelhos que morava ali. Com certeza a primeira história que eu escrevi (quando tinha quatro ou cinco anos) foi sobre um coelho chamado Coelho. Ele pegava sarampo e era recebido pelos amigos, inclusive um deles era uma abelha gigante chamada Senhorita Abelha. Desde o Coelho e a Senhorita Abelha eu quero ser uma escritora, apesar de nunca ter falado pra ninguém. Eu tinha medo de me dizerem que eu não tinha esperança.
Nos mudamos de casa duas vezes quando eu era pequena. A primeira mudança foi de Yate (perto de Bristol) para Winterbourne (do outro lado de Bristol). Uma turma de crianças que incluía eu e minha irmã brincava pra lá e pra cá na nossa rua em Winterbourne. Dois membros da turma eram um irmão e irmã cujo sobrenome era Potter. Sempre gostei desse nome, mas eu sempre gostei mais dos sobrenomes dos meus amigos que do meu (a pronuncia de “Rowling” é a mesma de “rolling”, o que acabava levando as crianças chatas a fazerem piadas).
Quando eu tinha nove anos nos mudamos para Tutshill, perto de Chepstow na Floresta de Dean. Finalmente estávamos no interior, o que sempre fora o sonho dos meus pais, os dois de Londres. Eu e minha irmã passávamos a maioria do nosso tempo passeando sem supervisão nas florestas e na beira do rio Wye. Minha única pulga atrás da orelha era que eu não gostava da minha escola nova. Era uma escola muito conservadora e pequena onde as carteiras ainda tinham tinteiros. Minha nova professora, senhora Morgan, me assustava muito. Ela aplicou um teste de aritmética no primeiríssimo dia e depois de muito esforço consegui tirar zero – nunca tinha feito frações na vida. Ela então me colocou na fileira logo do lado direito dela. Demorou alguns dias pra eu perceber que estava na fileira dos “idiotas”. A sra Morgan posicionava as pessoas na sala de acordo com o quão inteligente ela achava que fossem; os melhores sentavam na esquerda, e todo mundo que não fazia diferença sentava na direita. Eu sentei o máximo à direita possível sem sentar do lado de fora da sala. Até o fim do ano acabei sendo promovida para a segunda fileira do lado esquerdo – mas não de graça. A sra Morgan fez eu trocar de lugar com meu melhor amigo, fazendo com que em uma pequena caminhada pela sala eu me tornasse inteligente mas impopular.
Do Primário Tutshill eu fui para o Wyedean Comprehensive. Ouvi o mesmo rumor sobre Wyedean que Harry ouve do Duda sobre Stonewall High em Pedra Filosofal. Mas não era verdade – pelo menos nunca aconteceu comigo. Era quieta, sardenta, pequena e ruim em esportes (sou a única pessoa que conheço que conseguiu quebrar o braço jogando netball). Minha matéria preferida era com certeza inglês, mas eu gostava de línguas também. Eu contava a meus amigos igualmente quietos e estudiosos histórias seriadas longas nos intervalos. Elas geralmente envolviam a gente fazendo coisas heroicas que com certeza não faríamos na vida real; éramos todos nerds demais. Uma vez briguei com a menina mais durona da minha sala, mas não tive outra opção, ela começou a me bater e aí ou eu batia de volta ou caía e me fingia de morta. Por alguns dias eu fiquei famosa por que ela não conseguiu me derrubar. A verdade é que meu armário estava logo atrás de mim e me segurou. Passei semanas depois passando nervosa pelas esquinas da escola no caso dela querer me pegar de surpresa.
Fiquei menos quieta quando cresci. Comecei a usar lentes de contato, o que me fez ter menos medo de levar um soco na cara. Escrevi bastante quando era adolescente, mas nunca mostrei nada pros meus amigos, a não ser algumas histórias engraçadas que, de novo, tinham a gente disfarçados de outros personagens. Me tornei monitora no meu último ano, e só lembro de duas coisas que eu tinha que fazer; uma era mostrar a feira da escola para a Senhora Alguém, e a outra era dar um anúncio pra escola inteira. Decidi colocar um disco pra tocar enquanto eu não falava. O disco estava riscado e tocou a mesma parte da música milhões de vezes até que a diretora da escola deu um chute no rádio.
Fui para a Universidade de Exeter logo depois da escola, onde estudei francês. Esse foi um grande erro. Tinha ouvido meus pais demais, que achavam que línguas levariam a uma grande carreira como secretária bilíngue. Infelizmente sou uma das pessoas mais desorganizadas do mundo e, como provei depois, a pior secretária que já existiu. Tudo o que gostava no trabalho no escritório era poder escrever histórias no computador quando ninguém estava olhando. Nunca prestava muita atenção nas reuniões por que eu geralmente estava rabiscando pedaços de uma nova história nas margens do caderno, ou escolhendo nomes excelentes pros personagens. Isso é um problema quando esperam que você esteja descrevendo a reunião.
Quando eu fiz vinte e seis anos desisti completamente de trabalhar em escritórios e fui ensinar inglês em outro país. Meus alunos faziam piadas com meu nome; era como ter voltado a Winterbourne, só que as crianças portuguesas falavam “Rolling Stone” ao invés de “rolling pin.” Amava ensinar inglês, e trabalhava tardes e noites, tendo a manhã livre para escrever. Era bom por que na época tinha começado a escrever meu terceiro livro (os dois primeiros foram abandonados quando percebi que eles eram muito ruins). O novo livro era sobre um menino que descobre que é um bruxo e é levado a uma escola de bruxos. Quando voltei de Portugal, metade de uma mala estava cheia de papéis cobertos de histórias sobre Harry Potter. Vim morar em Edimburgo com minha filha muito pequenininha, e me dei um ultimato; iria terminar o livro de Harry antes de começar a trabalhar como professora de francês, e tentar publicá-lo.
Um ano depois de terminar o livro uma editora o comprou. O momento em que descobri que Harry seria publicado foi um dos melhores da minha vida. Nesse momento, estava trabalhando como professora de francês e sendo perturbada nos corredores pelas letras do tema de Rawhide (“rolling, rolling, rolling, keep those wagons rolling…”). Alguns meses depois de Harry ser levado para ser publicado na Grã Bretanha, uma editora americana comprou os direitos por uma quantidade de dinheiro suficiente para me fazer largar o ensino e escrever full-time – minha maior ambição.
E eu tenho um coelho de verdade agora. Ela é grande e preta e me arranha ferozmente quando eu tento pegá-la. Algumas coisas são melhores na imaginação.
Esse texto é o segundo de uma coleção especial de artigos escritos por J.K. Rowling e mencionados no livro “J.K. Rowling: A Bibliography 1997-2013”. O Animagos retoma esse projeto de tradução e publicação com muito entusiasmo, e espera que os visitantes apreciem o conteúdo! Deixe seu comentário e feedback!