Harry Potter

O problema com o ativismo de Hermione Granger – Opinião

Escrito por Igor Moretto

Hermione Granger é, ao mesmo tempo, duas personagens. De um lado está aquela que é projetada na tela do cinema e que curiosamente tem muitas características em comum com uma atriz britânica chamada Emma Watson, e do outro uma menina chata, não muito bonita e que erra em seus exageros imaturos.

Quando lemos a narrativa centrada na personagem contra a escravidão dos elfos-domésticos, que começa em Harry Potter e o Cálice de Fogo e se estende até o último livro, Harry Potter e as Relíquias da Morte, notamos que sua luta não é muito levada à sério. Chegam até a sugerir que J.K. Rowling (autora dos livros) estivesse fazendo algum tipo de apologia à escravidão atlântica.

Assim como o rosto de Emma Watson aparece em nossas mentes quando pensamos em Hermione Granger, também outros detalhes da história no papel ficam deixados de plano de fundo nas nossas interpretações. É importante voltar ao contexto sempre que essas distorções causam desconforto e resgatar detalhes e nuances da obra original. É lá que encontramos as respostas para uma interpretação menos forçada e, talvez, mais de acordo com a construção real.

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Os elfos-domésticos como analogia à classe operária

Podemos pensar os elfos-domésticos como representação da classe trabalhadora, ou mais especificamente da classe operária livre, que Karl Marx e Friederich Engels analisam em seus escritos. O operário é quem opera as máquinas, que faz o trabalho, que é contratado para colocar a mão na massa. Parece familiar? Mas eles são livres! Quase. Marx afirma que a “liberdade” da classe trabalhadora é uma liberdade “parcial”, já que se baseia na exploração.

O operário livre […] vende-se a si mesmo, e além disso por partes. […] oito, dez, doze, quinze horas da sua vida diária pertencem a quem as compra. O operário, quando quer, deixa o capitalista ao qual se alugou, e o capitalista despede-o quando acha conveniente, quando já não tira dele proveito ou o proveito que esperava.

KARL MARX
Trabalho assalariado e Capital (1849).

Esse “proveito”, que Marx menciona no trecho acima, sabemos que se chama lucro, e é dele que sai o mais-valor do trabalhador. Mais-valor é todo o excedente de dinheiro que o trabalhador gera, mas que o empregador (burguês) embolsa. Como o burguês nunca está satisfeito, por querer sempre acumular mais, o preço do trabalho do operário sempre precisa ser o mais baixo possível!

Vemos o acúmulo acontecendo na realidade de ricaços como Jeff Bezos, dono da Amazon, que chegou a dizer que criou sua empresa de astronáutica privada porque não sabia o que fazer com seus bilhões de dólares. Se pudesse, o burguês dava só o necessário para que o operário não morresse, já que sem ele também não haveria trabalho feito.

Essa relação é de obrigação, porque uma parte possui mais necessidade vital que a outra – e é por isso que, muitas vezes, o trabalhador tolera salário baixo, condições indignas de atuação e/ou ameaças para evitar o desemprego e a miséria extrema.

Isso quer dizer que, apesar de a relação ser livre no sentido de que o empregador não é dono da pessoa e não pode vendê-la como mercadoria (nem forçá-la a trabalhar sem remuneração), sua força de trabalho é mercadoria e sua liberdade é limitada pela natureza opressora da estrutura capitalista.

SABRINA FERNANDES
Se quiser mudar o mundo (2020), p. 76.

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A luta idealizada de Hermione

Com tudo isso que pensamos até agora, chegamos ao cerne do problema: o método de ação falho de Hermione, que lhe rende chacota tanto dos personagens quanto da própria narração.

‎‎‎– Tem elfos domésticos aqui? – perguntou, encarando Nick Quase Sem Cabeça com uma expressão de horror. – Aqui em Hogwarts?

– Claro que sim. […]

– Mas eles recebem salário? – perguntou ela. – Têm férias, não têm? Licença médica, aposentadoria e todo o resto?

Nick Quase Sem Cabeça deu gargalhadas tão gostosas […]

– Licença para tratamento médico e aposentadoria? […] Elfos domésticos não querem licenças nem aposentadorias.

Hermione olhou para o prato de comida em que mal tocara, juntou os talheres e afastou-o. […]

– Trabalho escravo – disse a garota, respirando com força pelo nariz. – Foi isso que preparou este jantar. Trabalho escravo.

E recusou-se a continuar a comer.

J.K. ROWLING
Harry Potter e o Cálice de Fogo (edição de 2020), p. 154-155.

A fala de Hermione sobre salário, férias, licença médica e aposentadoria mostra que a garota tem como forma ideal o trabalho assalariado que nós mesmos, leitores, conhecemos no nosso mundo trouxa, e que é aquele trabalho baseado em exploração observado por Marx. A meta que ela almeja, portanto, é uma meta baseada na sua ideia do que seria perfeito. Uma ideia baseada na sua realidade no mundo capitalista.

A luta de classes não se dá no vácuo. É preciso determinar os componentes da conjuntura e, em especial, aferir o potencial relativo de luta política de que a classe operária dispõe, em função das tarefas que lhe são possíveis nos confrontos econômicos, sociais e políticos com a classe burguesa.

FLORESTAN FERNANDES
Nós e o marxismo, p. 41.

Para sermos justos, ela viu um elfo-doméstico, Dobby, que ficou feliz em ser libertado, além de sua própria ideia. Porém, o que ela não colocou na balança foram as condições de trabalho de Dobby. Ao analisar a jornada de Dobby, percebemos que sua existência na casa dos Malfoy era totalmente miserável, em oposição aos elfos que proclamam gostar da sua “escravidão”, como Winky e Monstro.

Seus donos não tinham qualquer apreço por ele, e obrigavam-no a fazer coisas contra sua vontade, levando-o a punir-se fisicamente. Winky, pelo contrário, se pune na “liberdade”, ao trair seus mestres; e a crueldade, no caso dela, se opõe à de Dobby, ao passo que começa no ato da “libertação”.

Mais tarde, ela trata Dobby como exemplo quando descobre que o elfo-doméstico foi em busca de trabalho assalariado ao ser libertado por Harry em Harry Potter e a Câmara Secreta. Dobby confirma o viés de Hermione ao relacionar sua liberdade ao trabalho assalariado, e ainda mais: ao consumo!

– Dobby viajou pelo país durante dois anos, meu senhor, tentando encontrar trabalho! Mas Dobby não encontrou nada, meu senhor, porque agora ele quer receber ordenado! […] Hermione […] exclamou:

– Assim é que se faz, Dobby!

– Muito obrigado, senhorita! […] Mas a maioria dos bruxos não quer um elfo doméstico que exige ordenado, senhorita. “Isto não é próprio de um elfo doméstico”, dizem eles e batem a porta na cara de Dobby! Dobby gosta de trabalhar, mas quer se vestir e quer receber ordenado, Harry Potter… Dobby gosta de ser livre! 

J.K. ROWLING
Harry Potter e o Cálice de Fogo (edição de 2020), p. 314.

Sabrina Fernandes escreve, em Sintomas Mórbidos (p. 48), que o 

[…] consentimento capitalista via consumo, concessões de direitos e valorização de sua forma de desenvolvimento econômico esconde o antagonismo de classe entre explorados e exploradores – e pode até mesmo encorajar uma sensação de dívida/gratidão dos explorados para com os exploradores quando estes promovem melhorias de vida pontuais.

Hermione não considera a diferença entre a escravidão alienada dos elfos-domésticos e a consciência social de Dobby gerada pela sua realidade única e vê em sua liberdade a resolução do problema dos elfos-domésticos.

Porém, a realidade do trabalhador assalariado na nossa democracia capitialista é uma realidade de concessão de direitos, onde a propriedade privada de um magnata sempre está à espera de um trabalhador. Tudo está aparelhado. Mesmo se os elfos seguirem a sugestão de “liberdade” de Hermione, vão receber “portas na cara”. Na sociedade bruxa, a mudança teria de ser mais drástica, e mesmo assim só levaria à liberdade “simbólica” ou “parcial” capitalista.

Dobby faz sua própria revolução porque sua condição era a condição necessária para a revolução. Ele era violentado, reprimido. Friederich Engels diz, nos Princípios Básicos do Comunismo (1847): “o desenvolvimento do proletariado em quase todos os países civilizados é violentamente reprimido e que, deste modo, os adversários dos comunistas estão a contribuir com toda a força para uma revolução”.

Hermione quer que os elfos-domésticos entendam, através de seus gritos, cartazes e bottons, que a alienação existe. E é por isso que a pergunta que Jorge Weasley faz à menina no capítulo quinze de Cálice de Fogo resume tão bem o problema de Hermione:

– Escuta aqui, Mione, você já foi à cozinha?

– Não, claro que não – respondeu a garota secamente. – Nem posso imaginar que os alunos devam…

– Bom, nós já fomos – disse Jorge, indicando Fred – várias vezes para afanar comida. E encontramos os elfos e eles estão felizes. Acham que têm o melhor emprego do mundo…

– É porque eles não têm instrução e sofrem lavagem cerebral!

J.K. ROWLING
Harry Potter e o Cálice de Fogo (edição de 2020), p. 200.

Nota-se que Hermione já tem idealizada a resolução e as causas do problema, mesmo sem nunca ter dialogado de fato com um elfo-doméstico.

Por meio de uma pedagogia dialógica, os indivíduos aprendem a questionar sua própria alienação não porque lhes é dito, mas porque se tornam conscientes de sua existência dentro das circunstâncias da alienação.

SABRINA FERNANDES
Sintomas Mórbidos, p. 60.

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Racismo e a desumanização dos elfos

Para entender qual é a origem do problema dos elfos-domésticos, seria necessário, além do diálogo, aceitar e investigar uma característica do mundo bruxo da qual a própria Hermione é vítima: o racismo.

O método de análise que Karl Marx nos oferece, o materialismo histórico, é, sem dúvida, a melhor forma de encarar problemas assim. E ele veio em contrapartida ao idealismo de Hegel, que acreditava que a verdade podia ser encontrada com base nas ideias do homem. Marx discorda: as ideias do homem só reproduzem a sua realidade. A melhor forma de chegar à verdade é através da história material.

Hermione não analisa a história dos elfos-domésticos, e nem a do mundo bruxo em si, e aí se encontra o problema de sua abordagem. Enquanto ela quer reproduzir as noções de liberdade que ela traz de sua vivência no mundo capitalista trouxa em sua meta, os elfos só querem saber de continuar vivendo sem perturbação, alienados.

A luta que ela empenha para a “libertação” dos elfos-domésticos é, essencialmente, uma luta “de cima para baixo”. Ela quer que os elfos-domésticos “acordem” da alienação que esconde sua realidade de exploração da mesma forma que muitos movimentos de esquerda (até da esquerda radical!) às vezes fazem com a classe trabalhadora, sem construir uma base que reconheça a real raiz de seus problemas.

A libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo.

PAULO FREIRE
Pedagogia do Oprimido, p. 77.

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Conclusão

Temos então como moral da história que a luta, mesmo que nobre, não pode ser feita de qualquer jeito, sem organização e sem método. A maneira com que Hermione encara um problema que crê necessitar de solução é caótica e condescendente!

Paulo Freire fala de práxis, e Karl Marx desenvolve a práxis revolucionária em seus escritos. A práxis revolucionária é uma atividade teórico-prática em que a teoria se modifica constantemente com a experiência prática, que por sua vez se modifica constantemente com a teoria. É um movimento de correlações.

Mas voltemos ao início do texto para entender o porquê do incômodo do fandom com a crítica ao ativismo de Hermione, tanto dentro quanto fora da história.

Quando falamos que a imagem de Emma Watson se sobrepõe à imagem de Hermione descrita nos livros,  não estamos falando apenas do visual, mas também do que é projetado. Toda e qualquer narrativa que envolva Hermione falhando ou equivocada, que antes estava nos livros, foi completamente limada das adaptações para o cinema. Isso faz com que a imagem da Hermione imaculada, que nunca erra, e cujo arco de amadurecimento vai apenas até Harry Potter e a Câmara Secreta, fale mais alto. A contestação de suas atitudes é inconcebível para quem tem as memórias do cinema vivas e frescas em sua mente.

A Hermione sem falhas e defeitos que no filme Harry Potter e as Relíquias da Morte: parte 1 dá de cara com os problemas estruturais da ideologia vigente do mundo bruxo fica então manca, lhe faltam alguns temperos. Sua posição de vítima na mansão dos Malfoy, nos filmes, perde o significado de resistência anti-racista que tem nos livros e acaba se tornando apenas a cena de uma “moça indefesa” sendo torturada por uma bruxa maluca e sádica.

Tudo isso nos mostra que devemos aprender com os erros de Hermione e procurar na história material, no contexto e na raíz, a resolução dos problemas, já que é insuficiente fazer uma leitura em preto e branco de uma realidade colorida. Como disse Sirius Black, “o mundo não é dividido entre pessoas boas e comensais da morte”.

Em 2021, com o desgoverno de Bolsonaro em operação e com a crise na esquerda nacional, a epopeia de Hermione na luta equivocada contra a escravidão dos elfos-domésticos é uma ótima forma de analisar ludicamente nossos erros e acertos, e decidir se queremos aprender com nossos erros ou seguir na ilusão de que somos perfeitos e que não há nada a melhorar.

 

Divisor de texto em formato de elfo-doméstico.

 

Sobre o autor

Igor Moretto

Igor já trabalhou como tradutor de conteúdo em diversos sites. Hoje, formado em Produção Audiovisual, procura alimentar o Animagos com novidades e é responsável pelo Podcast Animagos.