No quinto episódio do podcast The Witch Trials of J.K. Rowling, tem um momento em que J.K. Rowling diz que as pessoas que utilizam de táticas belicosas na internet como ameaças de morte são parecidos com os Comensais da Morte e, como sempre é de se esperar, o que a autora disse foi distorcido ao ponto que transformaram o que ela falou em “as pessoas trans são Comensais da Morte”.
O podcast vem construindo o contexto sobre o qual Rowling está falando desde o terceiro episódio. Nele, ela fala sobre Milo Yiannopoulos, um jornalista e influenciador nos Estados Unidos que foi alçado à condição de mártir e até ganhou espaço no horário nobre da televisão americana justamente porque seus opositores o atacaram de formas violentas.
“Acho que a primeira vez que me interessei pelo que estava acontecendo culturalmente foi quando Milo Yiannopoulos, o provocador da direita alternativa, surgiu”, disse Rowling. “Eu via […] ele tentando discursar em vários campus e gerando protestos, motins… ‘Queremos que ele perca suas plataformas’, ‘Queremos que ele não discurse’… E eu achei essa estratégia terrivelmente equivocada.
“Tive a impressão que estavam dando muito mais poder do que esse homem merecia ao se comportarem dessa forma. Faziam Milo parecer muito mais ousado e atraente do que ele merecia. […] O certo seria subir no palco, destruir suas ideias e expor o tipo de charlatão que ele é, mas acabaram dando um poder enorme a ele ao recusarem a conversa.
“Eu já participei de passeatas, já participei de movimentos de massa, já assinei petições e já me manifestei de diversas formas, mas quando o assunto é um palestrante desses, acho que os opositores acabaram minando seus próprios fins. […] Ele pôde sair dessa situação dizendo que as pessoas não têm coragem de tentar vencê-lo, tão ousado e perigoso que ele é. É claro que eles não querem dar mais munições para a direita alternativa, mas, infelizmente, é o que acabaram fazendo.
“Eu fui ficando desconfortável com o que via. A maneira com que esse movimento se comportava me incomodava. Comecei a ver ativistas se comportando de formas muito agressivas do lado de fora de reuniões de grupos feministas. Eles batiam e chutavam as janelas, todos mascarados… […] Eu assistia essas coisas e ficava muito perturbada porque esse movimento pelo qual eu estava começando a me interessar havia se transformado nisso tão rápido.”
Para o bom entendedor, fica muito claro que Rowling está falando sobre um tipo muito específico de movimento cuja retórica belicosa a autora considera não só negativa, mas também um desserviço às pautas que defendem.
Esse trecho é muito interessante porque aqui vemos a autora falando sobre um cenário em que os direitos trans não estavam em questão. Milo Yannopoulos é um personagem da extrema-direita americana que está super distante das inclinações políticas de Rowling. E mesmo assim, a crítica recai a seus “aliados” políticos, justamente pelo modus operandi.
O assunto continua e chega ao quinto episódio, onde Rowling fez a declaração que acabou distorcida. Megan Phelps-Roper, a jornalista que produz e narra o podcast, conversa com a autora sobre a repercussão de seus tweets e seu artigo, ambos considerados transfóbicos. Leia os trechos em questão abaixo.
“Me dizem constantemente que eu não entendi meus próprios livros ou que eu traí meu próprio livro. Minha posição é que eu estou absolutamente defendendo as posições que tomei em ‘Potter’. Minha posição é que este movimento de ativistas, da forma que está se estabelecendo atualmente, ecoa exatamente aquilo contra o que eu adverti em ‘Harry Potter’.
“O que eu acho que diria, acima de tudo, a quem tenta me dizer que eu não entendo meus próprios livros é isso: alguns de vocês não entenderam os livros. Os Comensais da Morte alegavam que tinham sido obrigados a se esconder e que agora era a hora deles, e que qualquer pessoa que pisasse em seu caminho seria destruído. Se discordar da gente, você deve morrer. Eles demonizavam e desumanizavam quem não era como eles.
“Eu estou lutando contra o que eu vejo como um movimento poderoso, traiçoeiro e misógino que acredito que ganhou tração em áreas muito influentes da sociedade. Não vejo esse movimento em particular como benéfico ou impotente, portanto me coloco do lado das mulheres que estão lutando para serem ouvidas mesmo com ameaças de perda de emprego e segurança pessoal”.
Reparem que em nenhum momento sequer Rowling menciona pessoas trans. Será muita ingenuidade nossa acreditar que o sujeito dessa crítica da autora é, na realidade, as pessoas em movimentos, quaisquer que sejam, que ameaçam e assediam aqueles que discordam do seu ponto de vista?
Será que a mídia de entretenimento, que fala de assuntos políticos com a profundidade de um pires, já manipulou tanto a consciência dos odiadores de plantão que uma afirmação completamente absurda como “ela disse que pessoas trans são Comensais da Morte” passou a ser aceita como verdade incontestável com a maior naturalidade?
É tão incontestável que, com certeza, vai aparecer gente acusando o Animagos de passar pano e fazer malabarismo argumentativo. Mas será que quem está fazendo malabarismo não são eles mesmos, simplesmente para se endorfinar com uma confirmação de que o alvo de seu ódio merece mesmo esse ódio?
Precisamos refletir: Basta estarmos certos em nossa tese para que nossas ações, atitudes e táticas sejam automaticamente coerentes e aceitáveis? É impossível agir erroneamente pela coisa certa?
Nós não acreditamos que as pessoas trans tenham sequer poder para causar as mazelas das quais são acusados pelos movimentos críticos de gênero. É inconcebível pensar que essas coisas das quais Rowling fala sejam exclusividade do movimento trans. O problema está na sociedade, entranhada nos nossos comportamentos como sanguessugas. O problema é o ódio, e não existe ódio do bem.