J.K. Rowling

The Witch Trials of J.K. Rowling – Episódio 3 – Tradução

Arte de chamas amarelas, vermelhas e laranja. No centro, o texto "The Witch Trials of J.K. Rowling TRADUÇÃO, EPISÓDIO 3 - Uma nova pira".
Escrito por Igor Moretto

O podcast The Witch Trials of J.K. Rowling (Os Julgamentos das Bruxas de J.K. Rowling, em tradução livre) explora as controvérsias em que a autora de “Harry Potter” se envolveu, desde o lançamento da série até os dias de hoje. Leia mais sobre o podcast aqui. O Animagos está traduzindo os episódios. Encontre os outros episódios aqui.

No terceiro episódio, fazemos uma viagem desconfortável pelo mundo das redes sociais. A jornalista Megan Phelps-Roper conversa com historiadores, especialistas e criadores de conteúdo sobre o comportamento de massa online.

Megan também fala sobre o fandom de “Harry Potter” e como ele nasceu e cresceu ao mesmo tempo em que a internet se popularizou, e como esses dois fatos se entrelaçam na história dos fãs de longa data dos livros.

MAS ATENÇÃO: Este episódio contém linguagem inapropriada para menores de idade.

Ouça o episódio e leia a tradução abaixo!

Episódio 3 – Uma nova pira

Traduzido por Igor Moretto

Megan Phelps-Roper: Você pode me contar sobre as ameaças que recebeu nos últimos anos?

J.K. Rowling: Tiveram muitas. Uma quantidade enorme. Como toda mulher que fala sobre isso sabe, é uma quantidade enorme de coisas do tipo: “Quero que você engasgue na minha enorme pica trans.” Abuso muito sexualizado. Não acho que é literal pra todo mundo, mas tem muitas tentativas de degradar, humilhar…

Podem dizer que essas coisas não são ameaças de verdade, e sabe de uma coisa? Provavelmente é verdade, até certo ponto. Mas é muito desagradável receber essas coisas, ainda mais na quantidade que eu recebo.

E eu também recebi ameaças diretas de violência, pessoas vindo até a minha casa, onde meus filhos moram; e meu endereço foi postado na internet. Recebi o que a polícia chama de “ameaças reais”.

As reações são sempre: “Você é rica e pode pagar por segurança”, “Você não foi silenciada”. Tudo verdade. Tudo isso é verdade. Mas acho que essa não é a questão. A tentativa de me intimidar e me silenciar serve de aviso para outras mulheres, e eu digo isso porque já vi isso acontecer. Uma mulher me disse esses dias que literalmente disseram: “Veja o que aconteceu com J.K. Rowling. Cuidado.”

Rowling: Eu não tinha acesso à internet quando Pedra Filosofal foi publicado. Por volta de 98, eu acessava a internet, mas usava só para procurar coisas e enviar e receber e-mails. Eu tinha um senso de autopreservação que me impedia de procurar coisas de “Harry Potter” [risos], ao ponto que, em entrevistas, o fandom dos livros era mencionado e eu pensava: “Eu preciso saber do que se trata. Não posso ficar desinformada sobre isso. Preciso saber.” E então eu entrei na internet pela primeira vez e caí nesse universo.

Rowling: Eu fiquei tão fascinada quanto alarmada, pra ser sincera. [risos]

[Rowling diz que foi pega de surpresa quando viu a colisão de seus livros com a relativamente nova internet, assim como aconteceu com o sucesso deles. Mas ela também se sentiu intrigada]

Megan: De quais formas você viu as pessoas se conectando com os livros?

Rowling: Bem, tinham pessoas se selecionando para as casas de Hogwarts, o que era fofo, e que eu acho que conversa profundamente com as crianças e adolescentes. Pequenos grupo de apoio foram criados. Amizades de verdade foram feitas…

[Megan fala sobre como muitas relações foram criadas com “Harry Potter” como base. Em seguida, ela revela que Rowling já entrou em um fórum anonimamente]

Rowling: Eu escolhi um nome aleatório que não tinha nada a ver com “Potter”, apesar de todos terem nomes relacionados com “Potter”… Eu fiquei com medo de escolher um nome que fosse me revelar de alguma forma.

Eu entrei em uma sala de bate-papo onde as pessoas estavam conversando sobre teorias e dei uma opinião bem moderada. Acabei sendo cercada pelos usuários [risos], que me disseram para sair dali porque eu não era conhecida na sala e claramente era uma idiota que não sabia de nada… [risos] E eu saí! [risos] E eu pensava, eu juro: “Escrevi três livros e meio onde o bullying é um dos temas mais importantes desde a primeiríssima página. Onde o bullying e o comportamento autoritário são considerados alguns dos piores problemas humanos. E olha o que aconteceu! E essas pessoas se consideram tão fanáticos por essa franquia!”

Eu não me importei, [risos] eu era uma pessoa bem durona, mas e se eu fosse uma menina de 12 anos, feliz por entrar nesse lugar, e fosse completamente punida por não pertencer a ele? Simplesmente me expulsaram por eu ser nova lá. E eu achei muito interessante que essas pessoas, que eram apaixonadas por esses livros, se comportavam no mundo real da forma que eu ilustrei como um dos piores comportamentos humanos.

[Eram os primeiros dias de uma prática que hoje chamamos de “trolling”]

Rowling: Havia definitivamente trolls específicos nos fóruns do MuggleNet que estavam lá simplesmente para gerar controvérsia. Eram poucos, mas existiam.

No começo, achei curioso que existissem pessoas que passavam o tempo fazendo isso, mas com o passar do tempo, comecei a enxergar tudo isso como bullying. Havia uma certa vantagem em encher o saco de pessoas vulneráveis, e eu sabia, no começo dos anos 2000, que muitas crianças que se sentiam excluídas e vulneráveis se encontravam em “Potter”.

Eu me sentia no dever de proteger essas pessoas, então ver os trolls operando nesses lugares não foi divertido. Comecei a me preocupar. Na verdade, eu acabei me correspondendo frequentemente com algumas dessas pessoas. Me lembro de um caso em que uma criança me escreveu e eu e minha assistente acabamos telefonando para a escola dela, porque estávamos muito preocupadas por acharmos que ela queria se suicidar.

Eu soube, e ainda sei, que os livros são um refúgio para algumas pessoas que são, por diferentes motivos, muito vulneráveis.

Megan: Você se surpreendeu com a conexão de adolescentes gays aos livros?

Rowling: Para falar a verdade, isso não me surpreendeu, porque o mais incrível do mundo bruxo é que você pode passar por aquela parede no Beco Diagonal, e mesmo que a natureza humana continue a mesma (e isso foi uma coisa que eu quis retratar propositalmente), se você pode fazer magia, as discriminações ridículas do nosso mundo se tornam muito imateriais.

Megan: Quais você acredita que são as mensagens nos livros com as quais os excluídos se conectaram?

Rowling: Acredito que alguns dos personagens mais simpáticos são pessoas que estão lidando com coisas que podem ser estigmatizadas. Como o Lupin, por exemplo, que é estigmatizado por causa de uma coisa que ele não pode mudar ou controlar. E eles são todos imperfeitos… Harry tem problemas com sua raiva, o Rony é muitas vezes desagradável… Mas juntos, eles são muito melhores. Eles crescem juntos, encontram uma família um no outro, e há uma beleza humana de verdade nisso. Acredito que os Dursley são minha epítome de um mundo autoritário e conformista que demanda obediência absoluta, e esse não é o mundo aonde você vai quando chega a Hogwarts.

[Algumas pessoas entrevistadas falam sobre como a Rowling era vista como uma figura maternal e respeitada pelos fãs]

Rowling: Tive ciência de que eu estava, de certa forma, me tornando uma figura idealizada. E, provavelmente, uma figura materna idealizada. E essa é uma posição complexa de se estar. Para mim particularmente, é muito complexo porque eu sou de fato uma pessoa maternal. Não é como se eles vissem em mim alguma coisa que não existe… E eu também tive alguns relacionamentos maternais com alguns fãs específicos que passavam por momentos difíceis. Mas eu não quero ser idealizada. Eu sou um ser humano. Eu não seria capaz de escrever esses livros se eu não fosse um ser humano que reconhece a fragilidade e a imperfeição humana. E eu sei muito bem que a idealização custa caro.

Megan: Quero falar sobre seu discurso de formatura em Harvard. A essa altura, já haviam se passado dez anos desde a época em que você estava naquele pequeno apartamento, você tinha se tornado um dos autores mais adorados de todos os tempos, e você estava dando um discurso na faculdade mais prestigiosa dos Estados Unidos e talvez do mundo.

Você subiu lá, vestida com uma capa, cara a cara com a geração que cresceu junto com “Harry Potter”, e aconselhou-os pouco antes de eles saírem pro mundo. Seu discurso foi bastante pessoal e demonstrou muita vulnerabilidade. Você diz aos alunos que eles precisam ser empáticos com pessoas que são diferentes.

Mas hoje é muito difícil de imaginar que te receberiam em Harvard de qualquer jeito, ou que você receberia o mesmo acolhimento. O que eu quero entender, do seu ponto de vista, é: O que mudou? E quando você notou a mudança?

Rowling: Eu diria que por volta de dez anos atrás, eu comecei a me interessar e me preocupar bastante com o que estava acontecendo na internet. Notei uma virada.

Megan: Você lembra como se sentiu quando começou a ver essas coisas?

Rowling: Eu comecei a ver essas coisas em todos os lugares, então não levei para o coração. Tinha um tipo de puritanismo crescendo que, para mim, parecia bem limitador, algo que vai contra meus próprios valores. Aconteceu comigo, com outros artistas, com outras propriedades criativas, e foi inevitável. É claro que aconteceria comigo. Não foi divertido, obviamente, mas eu também não achei que fosse algo pessoal. Honestamente.

[Aqui, Rowling está falando sobre como as pessoas reagiam às coisas que ela falava na internet antes mesmo da controvérsia envolvendo os direitos trans]

Rowling: Comecei a pensar com muita frequência em subculturas que têm suas próprias regras rígidas, crenças aceitáveis e inaceitáveis… E tudo se tornando cada vez mais redutivo. Fiquei profundamente preocupada porque, para mim, parecia o crescimento de um tipo de autoritarismo e falta de empatia que aparecem em literalmente todos os livros que eu escrevo. Se tem uma coisa que eu repudio acima de tudo é o autoritarismo. E o autoritarismo está presente em todas as persuasões políticas. Está presente no ateísmo e em várias religiões.

Acho que a primeira vez que me interessei pelo que estava acontecendo culturalmente foi quando Milo Yiannopoulos, o provocateur da alt-right, surgiu.

[Em 2016, essa batalha na internet começou a acontecer fora da internet, e para muitas pessoas, a pessoa que marcou essa mudança foi um editor da Breitbart que era, essencialmente, a cultura do 4chan em forma de ser humano: Milo Yiannopoulos. Quando Milo era convidado para discursar em faculdades, constantemente apareciam protestos exigindo que ele parasse, o que levava a violência política]

Rowling: E eu observava, do outro lado do oceano, ele tentando discursar em vários campus e gerando protestos, motins… “Queremos que ele perca suas plataformas”, “Queremos que ele não discurse”… E eu achei que essa era uma estratégia terrivelmente equivocada.

Minha impressão era que estavam dando muito mais poder do que esse homem merecia ao se comportarem dessa forma. Faziam Milo parecer muito mais ousado e atraente do que ele merecia. Achava que era uma virada estratégica terrível. O certo seria subir no palco, destruir suas ideias e expor o tipo de charlatão que ele é, mas acabaram dando um poder enorme a ele ao recusarem a conversa.

[Milo, antes quase completamente desconhecido, passou a aparecer em programas sobre política no horário nobre da TV em questão de meses]

Rowling: Eu já participei de passeatas, já participei de movimentos de massa, já assinei petições, já me manifestei de algumas formas… Mas quando o assunto foi um palestrante desses, acho que os opositores acabaram minando seus próprios fins. Eles estavam servindo aos propósitos dele, porque ele pôde sair dessa situação dizendo que as pessoas não têm coragem de tentar vencê-lo, tão ousado e perigoso que ele é. É claro que eles não querem dar mais munições para a alt-right, mas, infelizmente, é o que acabam fazendo.

[Rowling diz que ficou assustada ao ver pessoas do lado político com o qual ela se identifica se comportando de maneiras que iam contra seus princípios mais importantes, mesmo quando o alvo era alguém que ela concorda que é ofensivo e imoral, além de um oponente político. Ela começou a pensar que isso talvez fosse uma coisa sobre a qual ela deveria falar]

Rowling: Eu fui ficando desconfortável com o que via. A maneira com que esse movimento se comportava me incomodava.

[Mas então, ela começou a notar que não eram apenas seus oponentes políticos que estavam sendo tratados dessa forma]

Rowling: Comecei a ver ativistas se comportando de formas muito agressivas do lado de fora de reuniões de grupos feministas. Eles batiam e chutavam as janelas, todos mascarados… O que, francamente, nunca é uma boa escolha, porque se você é uma pessoa boa, você não vai sair por aí de balaclava preta. Eu assistia essas coisas e ficava muito perturbada porque esse movimento pelo qual eu estava começando a me interessar havia se transformado nisso tão rápido.

Continua no quarto episódio…

Sobre o autor

Igor Moretto

Igor já trabalhou como tradutor de conteúdo em diversos sites. Hoje, formado em Produção Audiovisual, procura alimentar o Animagos com novidades e é responsável pelo Podcast Animagos.