J.K. Rowling

The Witch Trials of J.K. Rowling – Episódio 4 – Tradução integral

Arte de chamas amarelas, vermelhas e laranja. No centro, o texto "TRADUÇÃO, EPISÓDIO 4 - The Witch Trials of J.K. Rowling - Guerras de TERFs".
Escrito por Igor Moretto

O podcast The Witch Trials of J.K. Rowling (Os Julgamentos das Bruxas de J.K. Rowling, em tradução livre) explora as controvérsias em que a autora de “Harry Potter” se envolveu, desde o lançamento da série até os dias de hoje. Leia mais sobre o podcast aqui. O Animagos está traduzindo os episódios. Encontre os outros episódios aqui.

Hoje trouxemos a tradução completa do episódio, já que o contexto que envolve as falas de J.K. Rowling é imprescindível para a compreensão integral do que é falado. Contamos com a colaboração da nossa visitante Marina Daflon na tradução. Muito obrigado, Marina!

No episódio quatro, Megan Phelps-Roper narra os acontecimentos recentes envolvendo os ativistas trans e as feministas radicais tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido. Ela entrevista, novamente, especialistas sobre as questões em pauta e pessoas trans.

Opinião

Eu (o autor) gostaria de deixar claro que o Animagos como um site com diversas pessoas na sua equipe não tem uma posição neste debate. Por mais que tachem a simples publicação dessa tradução como “transfobia-por-associação”, nossa intenção é apenas trazer uma informação que antes estava inacessível ao público que fala português.

Também é importante lembrar que todo mundo tem um viés. A Megan, a J.K. Rowling, as pessoas entrevistadas. Todos. A imparcialidade é uma ilusão. Então não tomem absolutamente tudo o que vocês leem aqui como verdade. Números e outras coisas que parecem “científicas” podem ser manipuladas também.

Guia de leitura

Tudo o que está em itálico se refere à narração do episódio, também feita por Megan Phelps-Roper. Tudo o que aparecer com uma indentação maior, ou recuo, deve ser lido como inserções de áudio. O restante são perguntas e respostas em entrevistas, após o nome de quem pergunta e responde (ou o contexto) em negrito. Aproveite!

Episódio 4 – Guerras de TERFs

Traduzido por Marina Daflon
Revisado por Igor Moretto

Este episódio contém linguagem que não é recomendada para crianças.

Megan Phelps-Roper: Para alguém que nunca ouviu o termo TERF (em inglês, trans exclusionary radical feminist, ou, em português, feminista radical trans excludente), o que é uma TERF? De onde esse termo vem e o que ele descreve?

Helen Lewis: Não sei se você realmente entende o quanto esse termo pode ser ofensivo para algumas pessoas…

Lewis é jornalista da equipe do The Atlantic e autora de Difficult Women – A History of Feminism in 11 Fights (sem tradução oficial em português. Literalmente, Mulheres difíceis – uma história do feminismo em onze lutas).

Lewis: Pense neste termo como a palavra “queer”, que muita gente tem prazer em usar para se autodescrever, e que para outras pessoas é o que um skinhead gritou antes de tentar espancá-las numa boate. É assim que muitas mulheres se sentem a respeito de TERF. Algumas sentem que se apropriaram do termo e outras sentem que essa é uma palavra associada a pessoas que querem cortar as gargantas delas. É um termo que eu usaria com algum cuidado.

É uma abreviação de trans exclusionary radical feminist (feminista radical trans excludente), e meio que não significa mais nada disso. Eu frequentemente sou chamada de TERF, apesar de já ter escrito que acredito que mulheres trans são mulheres. Mas isso não importa. Significa simplesmente: “essa é uma mulher ruim e você não precisa saber mais nada sobre ela”. TERF é basicamente bruxa.

Gritos de protesto: TERFs, saiam da nossa cidade! […] Tirem elas daqui! Tirem elas daqui! Tirem elas daqui! […] TERFs voltem pra casa!, TERFs voltem pra casa!

Rowling: Eu fui ficando cada vez mais preocupada com a maneira com que via mulheres sendo caladas. Mulheres que eu acreditava terem preocupações muito válidas. Comecei a ver ativistas se comportando de forma muito agressiva na frente de reuniões feministas.

Megan: O que estavam fazendo?

Rowling: Estavam batendo e chutando as janelas, muito ameaçador… Estavam com o rosto coberto por máscaras. Eu vejo um ataque à liberdade de expressão, à liberdade de pensamento, até mesmo à liberdade de associação.

Gritos de protesto: Foda-se! Foda-se, sua vadia feia! Parece que arrancaram os seus dentes, sua fascista de merda! Ninguém sabe quem você é e ninguém se importa se você morrer sozinha! Você vai morrer sozinha e você vai queimar no inferno!

Megan: Quando você estava crescendo, o que você entendia por feminismo? Quem eram as feministas que você admirava e pelo que você as via lutar?

Rowling: Eu era… bastante feminista no final da minha adolescência, início dos vinte. E eu lia livros que, mesmo naquela época, já eram um pouco ultrapassados. Pessoas como Kate Millett, Germaine Greer, Simone de Beauvoir, é claro, que já estava morta quando eu descobri o livro dela. Eu me descreveria hoje, e provavelmente naquele tempo também, como uma idealista, definitivamente, mas nunca como uma ideóloga. Eu era e sempre fui apaixonadamente preocupada com a questão das meninas e mulheres, não só no ocidente, mas também para além dele.

Helen Lewis: J.K. Rowling nasceu em 1965 e isso significa que ela viveu a sua juventude durante uma época particularmente vibrante para o movimento feminista do Reino Unido. Em 1971, foi aberto o primeiro abrigo para mulheres da Grã Bretanha, em Chiswick, no leste de Londres. Essa foi a primeira vez que mulheres que apanhavam de seus parceiros tiveram um lugar para onde ir, sabe? Elas tinham como ir embora.

Megan: Você está dizendo que não existiam lugares assim até 1971?

Lewis: Isso. O primeiro foi fundado por uma mulher chamada Erin Pizzey…

Erin Pizzey (gravação antiga): Pouco depois do nosso espaço abrir, mulheres começaram a chegar e falar sobre o fato de que eram espancadas em casa por seus maridos e elas pareciam não conseguir nenhum tipo de ajuda de serviços sociais, da polícia ou de seus advogados.

Lewis: E as histórias [da Erin Pizzey] sobre o seu primeiro abrigo são… são de partir o coração. Mulheres chegando cobertas por hematomas, por queimaduras de cigarro..

Pizzey: Ninguém parecia fazer nada de construtivo para ajudar, aparentemente, estavam mandando essas mulheres de volta para os seus agressores. E algumas, de volta para serem assassinadas.

Em 1971, quando Rowling era uma jovem menina começando a escola primária, o mundo via o desenvolvimento de algo que mulheres da minha geração cresceram, em geral, sem dar o devido valor: um lugar para onde ir quando se é vítima do que hoje chamamos de violência doméstica.

Relato de uma mulher, possivelmente residente do abrigo de Pizzey (gravação antiga): Ele chegou em casa uma noite e me cortou bem aqui com uma navalha. Eu tive que esperar que ele dormisse pra poder ir pro hospital…

Lewis: As coisas que as pessoas passavam na vida privada, atrás de portas fechadas naquele tempo, são agora aterrorizantes, quando paramos para refletir.

(continuação) …ele me estrangulou uma vez e a única coisa que eu conseguia perceber no final era um monte de sangue. Sangue grosso e pegajoso escorrendo da minha boca. Eu estava no limite entre a vida e a morte.

Lewis: E era parte de um movimento maior naquela década, a ideia de que não se estava falando apenas daquilo que a polícia eufemisticamente chamava de espancamento de esposa, que geralmente ocorria em resposta a algo como uma “encheção de saco” e era, portanto, apenas um assunto doméstico. Toda essa linguagem foi jogada de lado e as pessoas começaram, ao invés disso, a falar de violência doméstica e da ideia de que isso era um crime e que era algo que causava danos reais e precisava ser processado perante a justiça.

O abrigo não só deu segurança para mulheres, como também trouxe conscientização para a frequência com que isso acontecia. E isso pavimentou o caminho para mudanças reais na polícia e nos serviços sociais. Essa é a fundadora daquele primeiro abrigo, Erin Pizzey, falando em 2014…

E outro problema, a não ser que ela tivesse uma família com a qual pudesse contar, que a protegesse, é que não havia dinheiro. Porque a partir do momento em que ela tentasse requerer algum tipo de ajuda financeira do serviço social, eles a diriam, em geral naquela época: ‘Seu marido quer você de volta. Então você não tem direito ao auxílio’.

Proteger mulheres tanto da violência por parte dos parceiros quanto da pobreza em que poderiam cair caso escolhessem deixar seus maridos, se tornou um foco principal do feminismo britânico e ao longo da juventude de Rowling.

Lewis: Esse era um tema importante ao longo dos anos 70 e 80, assim como foi o Reclaim the Night (Tome de volta a noite).

Gravação de notícia antiga: A polícia investiga a descoberta do corpo de uma mulher em um campo esportivo no distrito de Chapeltown, em Leeds. A mulher, que ainda não foi identificada, foi encontrada por um entregador de leite durante suas entregas matinais…

Lewis: Em 1977 aconteceu o movimento Reclaim the Night, que foi uma resposta ao Estripador de Yorkshire, um assassino em série de mulheres…

Notícias da época: O Estripador de Yorkshire, como o seu predecessor vitoriano, Jack, o estripador; mutilava as suas vítimas mulheres.

Sutcliff assassinou 13 mulheres entre Yorkshire e o noroeste da Inglaterra entre 1975 e 1980. Ele também foi condenado pela tentativa de assassinar outras sete mulheres.

Lewis: E isso provocou uma grande reação das feministas, e, na realidade, uma reação ao fato de que mulheres não estavam seguras em espaços públicos. De que mulheres estavam vivendo sob a constante ameaça de violência e intimidação dos homens. E isso incitou marchas por todo o Reino Unido. Por todo o mundo.

Discurso: A noite é mágica para os homens. Eles caçam vítimas aleatórias, encontram consolo, aprovação e santuário no escuro. Nós vamos ter que tomar de volta a noite! [gritos entusiasmados]

Rowling: Era uma característica muito presente na cultura em que eu cresci… que mulheres, por virtude da sua biologia, estão sujeitas a males específicos, a pressões específicas, e necessitam de proteções específicas. E que isso é indissociavelmente ligado à nossa biologia e que nós não poderíamos lutar pelos nossos direitos sem nomear e precisamente descrever o que nos faz diferente dos homens.

Rowling diz que tudo isso foi a fundação do seu entendimento de porque o feminismo era necessário. Porque por gerações a realidade da violência e do comportamento predatório dos homens foi um fato ignorado, diminuído, e até mesmo desculpado. Até que feministas lutaram para que fosse reconhecido e remediado de todas as formas possíveis.

Rowling: O meu feminismo precisa ser ancorado na classe sexual e nas opressões que a minha classe sexual sofre. Essa é a base da nossa opressão. Esse é o meu entendimento do porquê certas coisas tenham acontecido comigo.

E é claro, nós sabemos agora que a própria Rowling precisou dessas proteções e desses serviços na vida dela. E, enquanto assistia essas mulheres lutarem por seus direitos, Rowling diz que também as assistia serem constantemente vilificadas por isso.

Helen Lewis: O feminismo britânico enfrentou todos os ataques que o feminismo estadunidense enfrentou. De que estaria sendo levado por ultra esquerdistas, por manifestações estudantis que cresceram demais, por pessoas que provavelmente eram lésbicas ou mulheres que não eram normais em algum outro sentido.

Rowling: Feministas eram fortemente desacreditadas nos meios convencionais. Elas eram feias, elas não raspavam as axilas, elas eram agressivas, elas eram machonas. E eu acredito que veja paralelos com o agora, com o termo TERF.

Multidão gritando: TERFs voltem pra casa! TERFs voltem pra casa! TERFs voltem pra casa!

Rowling: Todas as mesmas narrativas cansadas sobre uma mulher que não se comporta da maneira que uma mulher deve se comportar, sabe… todos os clichês.

Pessoa em uma multidão gritando: Vai se fuder, sua feia de merda!

O que nos leva aos dias de hoje.

Mulheres cantando: Lá vem a noiva, tão gay, cheia de orgulho… Abraços, beijos e brindes pelas ruas! Case com que você ama…

Ao longo das últimas décadas, a luta por direitos LGBT viu várias vitórias importantes. A mais notável delas foi a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, tanto no Reino Unido quanto nos EUA.

Notícias: Uma conquista histórica para casais gay na Inglaterra e em Gales.

Apenas uma das muitas uniões entre pessoas do mesmo sexo hoje sob a bandeira do amor, mas agora, sob a proteção da constituição dos EUA.

Hoje podemos dizer, e não em termos incertos, que tornamos nosso País um pouco mais perfeito.

Então, restrições legais foram retiradas para a possibilidade de casais do mesmo sexo adotarem crianças, e um número recorde de candidatos LGBT foi escolhido por todos os EUA.

Notícia: 80% das empresas do grupo Fortune 500 protegem os seus trabalhadores transgênero. A maioria das cidades mais importantes protegem os seus cidadãos transgênero, a começar por…

A partir de hoje, pessoas transgênero podem se alistar no exército dos EUA…

E, só na última década, os direitos e a aceitação trans ganharam os holofotes. Culturalmente, com a visibilidade de celebridades trans como Laverne Cox e Caitlyn Jenner, mas também através de uma série de importantes vitórias institucionais. Da queda das restrições ao serviço militar à decisão do caso Bostock na Suprema Corte dos EUA…

A Suprema Corte decidiu que americanos LGBT estão protegidos pelas leis antidiscriminatórias desse país (…)

…que, em 2020, determinou que cidadãos trans têm proteção perante a lei e não podem sofrer discriminação em áreas como acesso à moradia e ambiente de trabalho. Mas, ainda assim…

Manifestantes noturnos levam seus gritos de guerra por direitos trans diretamente à Casa Branca.

…também houve uma reação negativa a algumas dessas conquistas. Seja por parte do presidente Trump, que reverteu as proteções ao atendimento médico e serviço militar para pessoas trans, instauradas na era Obama, ou por líderes populistas pelo mundo. Figuras como Viktor Orbán, na Hungria, que direcionou ataques à própria legitimidade de identidades LGBT como um todo. Mas essa não é a briga em que J.K. Rowling eventualmente viria a se envolver.

Helen Lewis: Eu acho que a coisa mais difícil para quem está de fora entender é que existem dois argumentos diferentes acontecendo. Um é o argumento tradicional conservador, que é anti-LGBT. Alguém como Viktor Orbán, na Hungria, não acredita que as pessoas devem ter permissão para transicionar e querem tirar esse direito delas. É parte de uma ideia mais ampla de que identidades LGBT são decadentes e pós-modernas, e vão meio que exterminar a força vital do país. Essa é uma crítica às políticas LGBT modernas.

O outro argumento é uma crítica que vem da esquerda, que diz que, às vezes, pessoas do sexo masculino e pessoas do sexo feminino têm interesses distintos, independentemente de como as pessoas do sexo masculino se identificam, e nós precisamos trabalhar esses conflitos em políticas e leis.

Recentemente, o conflito vem crescendo dentro da esquerda entre muitas daquelas mesmas pessoas que há tempos buscam e comemoram essas conquistas recentes dos direitos LGBT. Um conflito sobre se, às vezes, a luta por direitos trans pode estar em desacordo com as suadas conquistas do movimento de direitos das mulheres.

Lewis: Isso é bem diferente de dizer que alguém é um pervertido ou um degenerado, certo? É dizer: você é perfeitamente livre para viver a sua vida, essa é uma identidade perfeitamente válida para se ter, porém pode haver momentos em que ela entra em conflito com outras identidades.

Peguem como exemplo esportes femininos.

Notícias: A nadadora transgênero Lia Thomas está quebrando barreiras e recordes.

Lia Thomas chega em primeiro e esse é um novo recorde da Liga Ivy.

Antes atleta do time de natação da Universidade da Pensilvânia que competia no time masculino, Thomas transicionou e passou a competir no time feminino, não só ganhando campeonatos importantes, mas também quebrando recordes de natação feminina.

Thomas está apta a competir sob as regras de NCWA, que requerem que atletas transgênero completem pelo menos um ano de tratamentos de supressão de testosterona…

Isso fez com que muita gente argumentasse que seria injusto que alguém que passou pela puberdade masculina integrasse o time feminino, pois as vantagens atléticas que vêm com a puberdade masculina não poderiam ser completamente apagadas com a terapia hormonal.

Dentre essas pessoas estavam atletas olímpicos, como Sharon Davis, Michael Phelps e Caitlyn Jenner…

Phelps: Eu acredito que todos nós devemos nos sentir confortáveis com quem somos, na nossa própria pele, mas eu acho que esportes devem ser praticados dentro de um plano nivelado.

Jenner: Isso simplesmente não é justo.

…e, é claro, feministas.

No cerne disso tudo estão, na realidade, apenas duas questões que as pessoas sentem ser importantes: a justiça nos esportes de um lado e a importância da aceitação e da inclusão do outro.

Muitas dessas feministas apontam que elas lutaram muito, e ainda lutam, por patrocínios e recursos para esportes femininos, e veem um verdadeiro conflito de interesses aqui, que precisa ser conversado. Mas alguns atletas trans, como Thomas, questionam como essa situação se difere do fato de que há variações físicas entre todos os indivíduos.

Eu não sou especialista em saúde, mas tem muita variação entre atletas mulheres cis.

Uma nota: o termo cis se refere a pessoas que não são transgênero.

Há mulheres que são muito altas e musculosas e têm mais testosterona do que outras mulheres cis. Isso também deveria desqualificá-las?

Muitos defensores da causa trans dizem que tentativas de impedir que mulheres e meninas trans pratiquem esportes femininos é uma forma de intolerância, e esse conflito se torna mais complicado e mais controverso quando não se trata de esportes femininos, mas de espaços femininos. Espaços como banheiros, vestiários, abrigos para vítimas de violência doméstica e até mesmo prisões.

Nos últimos anos, essa tensão se tornou ainda mais urgente, principalmente entre algumas feministas do Reino Unido, por causa de uma proposta de lei que é frequentemente chamada de Self ID (autoidentificação).

Notícia: Candidatos estão preocupados com potenciais mudanças no Gender Recognition Act (ato de reconhecimento de gênero) que permitiriam que homens e mulheres escolhessem o próprio gênero, com o argumento de que isso poderia possibilitar que potenciais predadores homens abusassem de mulheres em espaços exclusivos.

Helen Lewis: A possibilidade legal de se facilitar bastante o processo para que alguém mude o próprio gênero foi o que fez com que essa discussão deixasse de ser abstrata entre teóricos feministas e queer e passasse a ser uma questão pujante na Grã Bretanha.

Discurso: Nós dizemos não para a autoidentificação! Nós dizemos não para homens em prisões femininas!

Há anos no Reinos Unido, se uma pessoa trans quer ser amplamente reconhecida pelo governo com o seu gênero de preferência, ele ou ela precisam passar por uma avaliação médica e receber um diagnóstico de disforia de gênero, que é essencialmente um desconforto intenso que uma pessoa pode experienciar se a sua identidade de gênero não bate com o seu corpo. Mas a proposta de mudança permitiria que pessoas mudassem o seu sexo ou gênero legal baseado em grande parte, como sugere o nome, na sua identidade de gênero auto declarada, sem nenhum tipo de requerimento médico ou diagnóstico. É uma mudança que algumas pessoas trans querem porque elas sentem que a necessidade de se ter um diagnóstico é estigmatizante.

Lewis: Os argumentos vêm da ideia de que, da forma que é hoje, existe um tipo de barreira. A pessoa precisa provar para um médico que é trans, o que é exatamente o que os ativistas trans desgostam no processo: a ideia de que outra pessoa dá a palavra final sobre sua identidade tão íntima. Mas o argumento feminista é de que algum nível de barreira seria necessário para garantir a segurança de espaços restritamente femininos.

Em outras palavras, a remoção dessa necessidade de diagnóstico médico, ou seja, a eliminação dessa barreira, preocupa algumas feministas, especialmente aquelas cunhadas por movimentos como o Take Back the Night. Elas se preocupam com a possibilidade de homens predatórios tirarem vantagem desses requisitos menos rígidos para fazer mal a mulheres e meninas. Elas se preocupam com a possibilidade de que, em um esforço bem-intencionado de tornar as coisas mais simples para pessoas trans, o governo esteja aumentando os riscos para as mulheres.

Rowling: Eu venho observando isso tudo. Tenho me interessado pelo assunto e li muito sobre.

E na medida que esse debate público cresceu, uma das feministas que se preocupavam era J.K. Rowling.

Rowling: Eu já estava ciente de que os ativistas estavam argumentando a favor desse tipo de autoidentificação. Dessa forma, uma pessoa do sexo masculino, com a forma física inteiramente masculina, pode, através da autodeclaração, se tornar, para os devidos fins, uma mulher conceitualmente, por assim dizer. Ele agora seria conceitualmente uma mulher. E esse ativismo me preocupava porque, depois de uma longa vida lidando com certas questões, seja como doadora, ou como ativista, ou por ser uma mulher, eu acho que eu tenho uma visão bastante realista, não uma visão alarmista, do que pode acontecer quando se torna os limites menos definidos em torno de espaços exclusivamente femininos… para mulheres e meninas. Então isso me deixava preocupada.

Você já pensou no que isso pode significar para mulheres e meninas? Eu já consigo até ouvir os gritos indignados: “Você está dizendo que todas as pessoas trans são predadoras?” É claro que não, assim como não estou dizendo… Eu sou uma mulher em um casamento feliz! Eu sei muito bem que nem todo homem é um predador. Eu sei disso! Eu tenho homens bons na minha vida que estão entre as minhas pessoas favoritas. Mas eu também tenho consciência de que 98, 99% dos crimes sexuais são cometidos por pessoas que nasceram com um pênis. O problema é a violência masculina.

Tudo o que um predador quer é acesso, e abrir as portas de vestiários ou abrigos para vítimas de abusos ou violência doméstica; abrir as portas para qualquer pessoa do sexo masculino que diga “eu sou uma mulher e eu tenho o direito de estar aqui”, vai representar um risco para mulheres e meninas. Agora, isso na verdade tem bem menos a ver com pessoas trans e bem mais a ver com o que sabemos que são os riscos entre homens e mulheres. Mas esse é o ponto. Já vi os ativistas que argumentariam contra mim dizerem: “mas essas pessoas agora são mulheres!” E eu diria, “bem, é aqui que o que é ser mulher se torna extremamente importante”.

E eu também me faço uma pergunta que eu acredito ser muito útil e básica de se perguntar se você deseja saber se está sendo intelectualmente honesta: “que prova eu precisaria ver para mudar a minha opinião?”. Então me fiz essa pergunta.

Estão afirmando que ninguém jamais abusou do direito de se vestir do sexo oposto, e que nenhuma mulher trans jamais representou uma ameaça física a uma mulher em um espaço íntimo. Obviamente, se eu procurasse e não encontrasse literalmente nenhuma evidência de que isso já aconteceu, então os meus medos seriam claramente infundados. Então eu fui olhar e é sem nenhum prazer que eu digo que existe evidência clara de que isso de fato já aconteceu.

Notícia: Nossa principal história dessa noite: Uma prisioneira transgênero atacou sexualmente detentas em um uma prisão feminina…

Helen Lewis: Há um caso famoso na Inglaterra de uma mulher trans chamada Karen White, que foi condenada por crimes sexuais e mandada para uma penitenciária feminina, e aí atacou sexualmente duas mulheres.

A corte ouviu como ela usou a sua persona transgênero para se colocar em contato com mulheres vulneráveis. Ela acabou indo para a prisão feminina New Hall, em Wakefield, após vários crimes sexuais, incluindo estupro. A pergunta é como alguém estuprou mulheres e que se diz transgênero pode ter acabado em uma prisão feminina antes de ter passado por uma cirurgia de mudança de sexo e pôde abusar de companheiras detentas.

Lewis: Isso aconteceu e foi um momento bastante importante, eu acredito, para o feminismo do Reino Unido, para todas essas pessoas que ouviram que isso nunca aconteceria. Elas enfim tinham evidência de que isso havia de fato acontecido.

Megan: Você consegue entender qual é o ponto de vista de quem está do outro lado do debate? Tipo, qual é a forma de entender, de boa-fé, o argumento que diz: se a sua identidade de gênero é feminina, então, com ou sem transição médica, você deve ser enviada para uma prisão feminina.

Helen Lewis: Tem um argumento muito razoável, que é o fato de mulheres trans estarem particularmente em risco de serem violentadas por homens em prisões masculinas, e isso é um fato. Existem muitos grupos que são vulneráveis, particularmente em prisões masculinas. Prisões masculinas são, em qualquer caso, um lugar horrível para se estar. As condições são horríveis, são lugares violentos, tensos. E, nos EUA, com suas taxas muito mais altas de encarceramento, essas questões são amplificadas.

Então eu acho muito razoável dizer que, se você é uma mulher trans que foi condenada por um crime não violento, haveria um alto risco para a sua segurança se você fosse colocada em uma prisão masculina. E a conclusão a qual se chegou na Grã Bretanha é de que, para pessoas com um certificado de reconhecimento de gênero, as pessoas que legalmente passaram pela transição completa, pressupõe-se que elas devem ser colocadas em uma instituição feminina. E para todas as outras pessoas, a decisão é caso a caso, mas com a presunção de que se você tiver sido condenada por um crime violento ou sexual, você não pode ser detida com segurança em uma instituição feminina.

Agora, isso não é o que aconteceu nos EUA, e a American Civil Liberties Union (em português, União Americana pelas Liberdades Civis) vinha lutando pelo direito de mulheres trans – algumas das quais condenadas por crimes violentos – de ficarem em instituições femininas, e isso é bastante alarmante pra mim.

A ACLU também vem lutando pelos direitos de mulheres trans no que tange o acesso a banheiros, e a discussão é parecida. Feministas se preocupam quando ouvem falar de ataques por mulheres trans – ou homens que se fazem de mulheres trans – em banheiros públicos. Há um exemplo muito divulgado na mídia que envolve um ataque a uma menina de 10 anos na Escócia.

Lewis: É raro, mas acontece. Existem casos extensamente documentados. Porém, precisamos ter muito cuidado para não cair numa narrativa de pânico moral que diz que pessoas vão transicionar só para atacarem outras. O que eu posso afirmar é que predadores exploram qualquer brecha que eles podem e isso é algo para que precisamos estar alertas. Quando se trata de garantir a segurança, não podemos ter uma visão fofa do mundo. É preciso olhar para o pior que pode acontecer. Eu acho que, mesmo consciente de que é raro, é preciso se reconhecer que acontece.

Justamente porque ataques em banheiros são tão raros, pessoa trans frequentemente acham irritante e humilhante quando pessoas com poder de decisão tentam forçá-las a usar o banheiro do seu sexo de nascimento.

Depoimento: É uma coisa rotineira. Todo mundo vai ao banheiro e sai. Não é nada de mais…

Muitas pessoas trans dizem evitar banheiros públicos por medo de serem rechaçadas, ou até mesmo atacadas. E isso faz com que seja complicado para elas simplesmente estarem no espaço público. Em um show, estádio, mas, ainda mais importante, no trabalho ou na escola. E defensores perguntam: “se o risco para outros é baixo, por que forçar intervenções que podem tornar essa situação já difícil ainda pior?”.

É só uma ida ao banheiro. Você vai, faz as suas necessidades, lava as suas mãos e vai embora. É muito simples. E, quando as pessoas fazem esse alvoroço, isso ganha um tamanho desproporcional…

Notícia: Em um mundo cada vez mais polarizado, questões de gênero se tornaram a linha de frente, e pode ser difícil saber por onde começar ou como expressar uma opinião. É permitido dar uma opinião? Na medida em que a briga entre os lados opostos aumenta, são crianças vulneráveis que caem no abismo.

Finalmente, a questão que trouxe esse debate antes obscuro para o centro da cultura é a transição médica de pessoas jovens.

Helen Lewis: Transição infantil. E isso é particularmente uma questão porque o número de pessoas buscando a transição enquanto crianças mudou e cresceu muito. A gente está falando de uma diferença na Grã-Bretanha de algumas centenas de pessoas por ano para milhares por ano na última década, aproximadamente.

As clínicas aqui e em Londres viram um aumento de 300% em relação a 10 anos atrás. Entre meninas, os encaminhamentos cresceram mais de 500%.

O número de menores que buscam a transição no ocidente aumentou expressivamente, principalmente entre jovens do sexo feminino. E, somente nos EUA, o número de clínicas que ajudam jovens a trasicionar foi de zero a mais de cem apenas nos últimos 15 anos.

Não há dúvida de que esses serviços estão ajudando crianças que se sentem desconfortáveis no próprio corpo, mas o impacto de crianças estarem tomando decisões a respeito de seus gêneros em uma idade tão jovem pode não ficar claro até bem mais para frente em suas vidas.

Lewis: Com certeza tem alguma coisa acontecendo aí, e se essas pessoas estão recebendo o tratamento adequado é uma boa pergunta, quando os tratamentos em si são tão novos. É uma pergunta de fato complicada.

Uma controvérsia relacionada à transição de crianças é um tratamento frequentemente chamado de bloqueadores de puberdade. Porém, essas não são drogas novas. Por décadas elas vêm sendo usadas para tratar a puberdade precoce, que pode começar aos 6 ou 7 anos. Os bloqueadores pausam a puberdade e a criança pode continuar o processo alguns anos mais tarde, junto com os seus pares.

Lewis: Esse é um uso muito diferente do jeito moderno de se usar em crianças trans, que é bloquear a puberdade no sexo de nascimento e partir para hormônios sexuais do sexo oposto.

Jovens com disforia de gênero tendem a ficar extremamente angustiados pelas mudanças em seus corpos, então clínicos de gênero passaram a usar essas medicações informalmente para parar a puberdade nessas crianças e, mais tarde, eventualmente introduzir hormônios do sexo oposto. Pacientes do sexo feminino começariam a ter pelos faciais e pacientes do sexo masculino desenvolveriam seios.

Erika Anderson: Eu tenho me preocupado há algum tempo com o fato de que alguns profissionais não estão seguindo as diretrizes de atendimento que historicamente evocam a necessidade de uma avaliação biopsicossocial individualizada, detalhada e abrangente antes do início de medicações.

Erika Anderson, é uma psicóloga que trabalhou extensamente com jovens transgênero e que é uma mulher trans. Ela também foi membra do conselho da Associação Profissional Mundial para a Saúde Transgênero (WPATH, na sigla em inglês). Como a Dra. Anderson me falou, a WPATH recomenda que, antes de se prescrever intervenções como bloqueadores de puberdade, os clínicos devem avaliar a criança metodicamente. Devem passar um tempo com o menor e seus pais para investigar qualquer condição subjacente e se certificar que este é o melhor tratamento para cada indivíduo. Mas bloqueadores de puberdade se tornaram um ponto de discussão inflamado, em parte porque alguns clínicos parecem não estar seguindo essas diretrizes.

Anderson: Então, o que eu tenho visto nos EUA, e isso também tem sido relatado em outros lugares, é que há alguns jovens indo a médicos e obtendo bloqueadores de puberdade sem passar por uma avaliação completa, e eu acho que isso é desleixado… E má prática.

Ao longo da última década, tornou-se mais e mais comum que pais e médicos adotassem uma abordagem de “afirmar” uma criança quando ela diz que é trans. Mas a Dra. Anderson diz que algumas clínicas e médicos bem-intencionados vão mais longe e, em uma tentativa de apoiar crianças com não conformidade de gênero, pararam de fazer perguntas importantes e frequentemente aceitam rápido demais a autoavaliação da criança. Alguns ativistas trans argumentam que isso é exatamente o que deve ser feito, como esse Tiktok famoso explica:

Ninguém diz que crianças cis são novas demais para saber que são cis. Não, confiam basicamente sempre que crianças cis sabem o seu gênero. Se crianças cis conseguem saber que não são transgênero, então crianças trans conseguem saber que são transgênero. É simples assim.

Anderson: Não é simples assim.

A Dra. Anderson diz que, especialmente quando se trata de crianças, é preciso se certificar de que você está dando um diagnóstico correto, assim como você faria com qualquer outra patologia. Mas, somado a isso, os cérebros de crianças e adolescentes ainda estão em desenvolvimento, então empurrar uma pessoa jovem para a transição de gênero sem uma avaliação completa de outras condições existentes seria má prática.

Anderson: E isso, para mim, vai de encontro com toda a história da medicina clínica e da psicologia clínica, cuja premissa é uma avaliação individual antes que se ofereça um tratamento. Essa minha preocupação se acentua ainda mais com o fenômeno que também temos visto ao longo dos últimos anos de uma multidão de jovens indo a clínicas de gênero e expressando variância de gênero, completamente fora de proporção do que já vimos antes e em números que não são completamente compreensíveis.

A Dra. Anderson e outros médicos continuam achando que há benefícios em se usar bloqueadores de puberdade em algumas crianças que apresentam disforia de gênero, mas também urgem por cuidado, especialmente médicos que oferecem esses tratamentos baseados, na maior parte, na solicitação feita pelos jovens. E isso é parcialmente porque esses tratamentos (bloqueadores de puberdade seguidos de terapia hormonal) podem levar à infertilidade e, para jovens do sexo masculino que têm sua puberdade bloqueada nos estágios iniciais, uma grande probabilidade de nunca ter um orgasmo. Ela diz que médicos devem se certificar de que esses tratamentos estão sendo oferecidos apenas àqueles que precisam deles, e que não está havendo erro de diagnóstico.

Notícia: Rubi começou a se identificar como uma pessoa do gênero masculino aos 13 anos. Agora, aos 21, ela planejava fazer uma cirurgia de remoção dos seios. Mas em maio ela tomou a decisão de interromper o uso de testosterona e destransicionar para identificar-se como pessoa do gênero feminino, o seu sexo designado ao nascer.

Histórias de pessoas que se arrependeram da sua decisão de transicionar vêm sendo amplamente noticiadas nos últimos anos, e elas frequentemente dizem que, quando crianças, não tinham a capacidade de dar consentimento a tratamentos com consequências a longo prazo que não compreendiam verdadeiramente. Outros dizem que gostariam que os médicos tivessem passado mais tempo investigando suas outras questões de saúde mental antes de recomendar a transição. Uma dessas jovens conversou com a Sky News.

A Rubi acha agora que o seu distúrbio alimentar era um fator com maior influência na sua disforia de gênero do que ela se dava conta na época.

Rubi: Nenhum dos especialistas com quem eu conversei mencionou isso. Não achavam que tinha relação.

Repórter: Você acha que tem?

Rubi: Eu acho que sim, porque os dois sintomas são baseados em como eu me sinto em relação ao meu corpo, então eu percebi similaridades entre os dois.

Não há dados até o momento sobre quantas pessoas na comunidade trans destransicionam, e falar sobre isso pode ser visto como transfóbico. Mas pessoas como Rubi dizem que é preciso mais debate, assim como mais opções para pessoas com disforia de gênero.

Esse tipo de depoimento serviu de confirmação para pessoas preocupadas com a hipótese de que jovens não estão recebendo os cuidados necessários. Ao mesmo tempo, são uma fonte de profunda frustração para ativistas trans, que dizem que o arrependimento é raro e que devemos confiar que as crianças são quem elas dizem que são ao invés de fazê-las passar por meses ou anos de avaliações.

O que torna tudo mais complicado é que os protocolos para cuidados de gênero em jovens são muito recentes. A atual presidente da WPATH, a Dra. Marcy Bauers, cita um gráfico que mostra que em torno de 80% das pesquisas médicas sobre gênero em jovens foram feitas nos últimos 10 anos e, apesar de não haver nenhum estudo de relevância sobre o fenômeno da destransição, ou sobre a efetividade de alguns desses tratamentos em menores, a Finlândia, a Suécia e o Reino Unido estão atualmente reavaliando seus tratamentos de gênero para jovens e pedindo por mais estudos, mais recursos e protocolos mais rígidos.

Rowling: Por mais desconfortável que a adolescência possa ser – olha, eu odiava a adolescência! Eu não romantizo a adolescência. Eu acho que é um período horrível! Eu me lembro de momentos de pura felicidade com os meus amigos, e eu me lembro de me divertir, mas, se você me perguntar “você quer voltar a ter 13 anos amanhã e viver tudo de novo?”, eu diria “de jeito nenhum, não, eu quero ficar exatamente onde eu estou”. Mas eu acho que é uma parte necessária do nosso desenvolvimento.

Rowling me disse que assistir a essa subida acentuada na transição de jovens, especialmente o aumento entre jovens do sexo feminino, começou a parecer uma preocupação particularmente feminista. E é algo com que ela podia se identificar em relação à sua própria infância.

Rowling: Eu cresci em um lar que eu diria ser um tanto quanto misógino. Assim como todas as meninas, eu cresci com certos padrões de beleza e ideais de feminilidade, e eu sentia que não me encaixava em nenhum desses grupos. Eu não me sentia particularmente feminina, eu certamente não sentia que eu tinha a aparência que eu deveria ter. Eu tinha uma aparência bastante andrógina com 12, 13. Tinha cabelo curto e me lembro de me sentir agudamente ansiosa na adolescência. Eu acho que isso é tão comum. Na verdade, acho que conheço mais mulheres que sentiram isso do que mulheres que não sentiram. Eu me sentia muito ansiosa com as mudanças do meu corpo, porque percebia que isso gerava um escrutínio que eu não queria. Eu lembro dos comentários sobre o meu corpo, da dificuldade de se lidar com a menstruação, de fazerem piadas sobre menstruação, particularmente vindo de meninos na escola. Essa fascinação meio sem jeito que homens jovens têm com o corpo feminino, que é uma mistura de nojo e desejo… Foi muito difícil lidar com isso. Eu questionava a minha sexualidade, eu pensava “eu posso dizer para as minhas amigas que elas são bonitas? Isso quer dizer que sou gay?”, o que eu acredito ser muito comum. Eu cresci e me tornei uma mulher heterossexual, mas eu nunca esqueci essa sensação de ansiedade em relação ao meu corpo.

Megan: Então a sua opinião é de que a transição é, essencialmente, uma escolha grande demais para uma criança fazer e lidar, com consequências a longo prazo que elas ainda não compreendem?

Rowling: Pessoalmente, eu não acho que mesmo alguém com 14 anos consegue entender o que significa a perda da sua fertilidade. Com 14 anos, se você tivesse me perguntado: “Você quer ter filhos?”, eu diria que não, mas ter filhos foi a coisa mais feliz e maravilhosa da minha vida. Não significa que eu ache que todo mundo deve ter filhos, não significa que eu ache que, para ser mulher, é preciso ter filhos. Eu digo que, de forma muito pessoal, para mim, os meus filhos me trouxeram uma alegria sem igual e eu não mudaria nada. E eu não teria como compreender isso aos 14, eu não teria ideia do que eu estaria abrindo mão.

Porém, quando eu estava sentada com a Rowling ouvindo as opiniões dela sobre a transição de jovens, ficou claro que elas não são simplistas.

Rowling: O que eu sinto, e isso está fortemente expressado nos livros do Potter, é que o maior número possível de experiências de vida diversas deve ser explorado e expresso e, tendo sentido que eu não pertencia de várias maneiras, eu tenho muita empatia com o oprimido. E eu tenho muita empatia com pessoas que sentem que não se encaixam. E eu vejo isso muito entre os jovens trans. Eu entendo essa sensação bem demais.

Mas esse aumento recente dos números parecia algo válido de se questionar de maneira sóbria.

Rowling: Disforia de gênero existe. Ela causa um sofrimento enorme. Eu sei que é real e eu sei que vai haver, eu acredito, uma minoria de pessoas para as quais essa vai ser uma solução, mas, na quantidade que nós vemos atualmente, particularmente entre jovens, eu acredito que há motivos para dúvida e preocupação. Então, eu fiz o que eu sempre tendo a fazer quando estou nessa situação e eu li muitos livros. Esse é o meu instinto…

Rowling disse que comprou algumas das maiores e mais vendidas memórias por autores e autoras trans.

Rowling:Sissy, de Jacob Tobia, Females, de Andrea Long Chu, grande escritora, Gender Game – The Problem with Men and Women

Ela leu ensaios e literatura acadêmica de pensadores influentes como Judith Butler…

Rowling: E eu li incontáveis blogs e artigos…

Megan: Você estava tentando desafiar a sua visão do assunto?

Rowling: Completamente! Porque eu realmente queria entender qual é o pensamento através da experiência pessoal, mas também a filosofia, a ideologia. Eu olhei para isso pensando: “tem alguma coisa que eu não estou vendo?”.

Ao longo dos meses e anos durante os quais Rowling esteve imersa na teoria queer e em memórias de diferentes pensadores trans, esse conflito entre algumas feministas e ativistas trans continuou a escalar.

Notícia: O debate estava previsto para começar em uma hora e, de repente, manifestantes mascarados entraram.

[Barulho e confusão]

A gente tem um evento essa noite e agora tem um monte de gente com bandanas tentando forçar a entrada. Eles estão com os rostos cobertos, sendo muito agressivos.

Pessoa 1: Ela me empurrou!

Pessoa 2: Eu não sou ela, sua vagabunda! O meu pronome é “they”!

Nos últimos anos, enquanto as feministas tentavam organizar encontros e debates para discutir sobre todos esses temas, de esportes femininos e autoidentificação ao tratamento adequado para a disforia de gênero em crianças, elas vêm se deparando com manifestantes tentando calá-las.

[Manifestantes gritando]

Notícia: Estes são ativistas trans protestando em frente a uma reunião feminista. Eles gritam TERF, uma sigla para feminista radical trans excludente. Embates entre os dois grupos estão eclodindo por todo o país.

Esses ativistas dizem “mulheres trans são mulheres. Ponto final”. Para eles, participar de debates por si só é participar de discurso de ódio transfóbico.

Rowling: E aí chegamos no famoso slogan: “não tem debate, não tem debate, não tem debate”. Ouvimos isso o tempo todo. Isso me deixa alarmada. Realmente alarmada. Eu não consigo pensar em um exemplo mais puro de autoritarismo do que “não tem debate”. Efetivamente, essa é a atitude de fundamentalistas: “Você não pode desafiar as minhas ideias. Isso te faz uma pessoa ruim. Eu tenho razão. Eu não preciso explicar a minha razão e isso me dá o direito de intimidar, de te assediar, de te silenciar, de tirar o seu sustento”… E tudo acaba culminando em ataques.

Depoimento: Já jogaram coisas em mim, já me acusaram de coisas que eu nunca fiz ou disse. As pessoas parecem não se preocupar nem um pouco com evidências ou até mesmo com responsabilidade.

Muitas das feministas taxadas de TERF já foram atacadas e ameaçadas de morte, assim como acusadas de serem, na verdade, nazistas e fascistas.

Rowling: Já houve ataques físicos. Uma mulher chamada Maria MacLachlan estava discursando na Speakers Corner em Londres, que é um lugar famoso para a liberdade de expressão, aonde pessoas podem ir e dizer basicamente qualquer coisa que queiram, e ela foi lá para uma reunião feminista e foi atacada por uma mulher trans chamada Tara Wolf, que foi inclusive condenada por agressão e que disse na internet antes de ir para a reunião: “eu quero dar umas porradas em umas TERFs”.

Michelle Goldberg: Olha, quando eu cubro esse assunto, eu frequentemente digo que depois eu preciso cobrir algo sem controvérsias para relaxar, como Israel e Palestina ou aborto. [risos] É extremamente carregado.

Essa é a Michelle Goldberg, repórter e colunista do The New York Times.

Goldberg: É muito carregado porque se trata de dois grupos de pessoas que se sentem, legitimamente, prontas para a batalha.

Megan: Você escreveu sobre esse conflito no New Yorker em 2014, em um artigo chamado “O que é uma Mulher?”, e mesmo naquela época, você falou do quanto foram intensas as táticas de ameaça e intimidação para com feministas que expressavam essa visão. Você cita algumas dessas ameaças no seu artigo, coisas como “mate TERFs 2014”, “que tal lenta e horrivelmente assassinar TERFs em máquinas de tortura e engenhocas tipo cerradeiras?”. Um jovem blogueiro postou uma selfie segurando uma faca com a legenda “me arruma uma TERF”. Esse tipo de ameaça, você escreve, se tornou tão comum que sites de feministas radicais começaram a catalogá-las.

Goldberg: Sim, eu acho que essas citações que você acabou de ler, eu não acho que essas pessoas representam a totalidade do movimento trans, mas, ainda assim, muitas feministas se sentem aflitas com pessoas constantemente dizendo coisas como “se você não me reconhecer como uma mulher, eu vou te estuprar!”. Elas simplesmente sentem que há um diálogo virtual muito cruel em que um tipo muito brutal de misoginia se veste com roupas progressistas e, pra piorar a situação, você não pode nem reclamar disso dentro de espaços feministas.

Deveria ser possível se ter uma discussão em que uma gama de pessoas diferentes pudesse entrar e dialogar sobre isso.

Essas feministas acreditam que suas visões não só estão dentro dos limites do debate respeitoso, mas também que as acusações de que elas são transfóbicas violentas parecem ser menos uma crítica sincera e mais uma tentativa de difamá-las para que ninguém as escute.

Michelle Goldberg: O que a gente está vendo no mundo são mais e mais pessoas contra a liberdade de discurso, censurando ideias, calando controvérsias. E, em uma sociedade democrática, é assim que entendemos melhor o outro.

E para além dos insultos virtuais, essa abordagem dos ativistas tem consequências na vida real. Mulheres que expressaram essas visões perderam seus trabalhos no meio editorial, na academia, no jornalismo e nas artes. Mulheres atletas perderam seus patrocínios, autoras perderam contratos de publicação… Por expressar suas preocupações, a Dra. Erika Anderson, uma mulher trans que ajudou várias crianças a transicionar, foi taxada de TERF e foi desconvidada de eventos públicos.

Megan: Michelle, como alguém que cobriu isso por anos, qual é a melhor forma de entender o lado dos manifestantes nesse conflito? Qual é o ponto de vista das pessoas que pedem pelo silenciamento desse debate e o que elas sentem estar em jogo nisso tudo?

Michelle Goldberg: Olha, o que está em jogo para muitas pessoas é simplesmente a possibilidade de viverem as suas vidas com algum tipo de dignidade e segurança e, de novo, eu gostaria de enfatizar isso e espero que isso entre no podcast: é por isso, eu acho, que a temperatura do debate é tão alta. Porque, especialmente nos EUA, as pessoas Trans estão tão sitiadas, há leis completamente opressivas…

[Trechos de notícias sobre os Estados Unidos]

Apesar da determinação da Suprema Corte [americana] que protege as pessoas trans de discriminação, e apesar do presidente Biden ter revertido políticas da era Trump contra o acesso à saúde e ao serviço militar, há centenas de leis propostas ou passadas nos últimos tempos que visam limitar o acesso de pessoas trans a banheiros, as suas participações em esportes femininos e restringir a transição de menores de idade. E algumas dessas leis vêm com penalidades severas.

Notícias: O Alabama se tornou na semana passada o terceiro estado do País a passar uma medida restringindo cuidados afirmativos de gênero para jovens transgênero e não binários, porém é o primeiro estado a impor penalidades criminais. A lei torna o oferecimento desses cuidados um crime com pena de até 10 anos de cadeia…

Além disso, na internet, assim como há alguns ativistas trans que mandam ameaças violentas e assediam as pessoas que chamam de TERFs, há também muitos outros, frequentemente da direita e da extrema-direita, que mandam ameaças violentas e assediam pessoas trans e seus aliados, às vezes com base em acusações de que qualquer tentativa de educar crianças a respeito de identidades trans é, na verdade, uma cortina de fumaça para um desejo de explorar crianças sexualmente. E, nesse clima, muitos ativistas sentem que feministas pedindo por diálogo aberto e debate com boa fé estão, na verdade, os deixando expostos a um perigo maior.

Michelle Goldberg: Eu acho que o que é tão doloroso para eles é que eles sentem que essas questões de sobrevivência diária estão sendo tratadas como algo secundário em relação aos pontos de conflito da guerra cultural em torno desses casos relativamente pouco numerosos envolvendo esportes femininos, desses poucos casos em que há de fato decisões complicadas, como prisões ou abrigos para vítimas de violência doméstica. E pessoas com quem eu conversei sentem que o foco intenso nessas questões está minando-as. Elas se sentem muito sob ataque, e como pessoas com muito medo e sob ataque, elas não querem ter conversas minuciosas a respeito da legitimidade de suas identidades por motivos meio óbvios.

Megan: Certo, e elas não querem ouvir debates sobre questões cheias de nuances quando sentem que estão lutando por direitos básicos.

Michelle Goldberg: Isso! Eu acho que a gente ouve frequentemente as pessoas dizerem: “Eu não vou debater a minha humanidade básica”, e parte da dificuldade é que há de fato certas questões que a gente decidiu de forma mais ou menos coletiva, com algum tipo de consenso, que estão acima do campo do debate. E eu acho que parte do que torna essa questão tão difícil é que tem pessoas que acham que esse tipo de consenso pode ser imposto, talvez, ao invés de evoluir organicamente.

Então elas estão meio que desesperadamente tentando consolidar isso na esperança, eu acho, de que, se conseguirem, elas vão gozar do mesmo tipo de proteção presumida que outros grupos, cujos direitos nós decidimos não estarem sujeitos à discussão pública.

O problema é que a gente não tem, de fato, um consenso sobre o que significa gênero ou o que faz de alguém um menino ou uma menina ou uma mulher ou um homem, então ainda é necessário falar sobre isso e ter essas conversas. E eu acho que tem muitas pessoas trans que acreditam nisso, mas as pessoas que estão policiando o discurso acabam tendo, talvez mais visibilidade.

Megan: Ok. Então vamos voltar para 2016, 2017. Você obviamente era uma pessoa muito pública, não tinha vergonha, em geral, de falar o que pensava, e parece que você tinha opiniões muito fortes sobre o que você vinha lendo – e você leu, pesquisou e pensou muito. Você queria entrar nessa conversa pública na época?

Rowling: Se eu queria entrar na conversa pública? Sim. Por que eu queria entrar nela? Porque eu estava vendo mulheres sendo caladas, e era como se não existisse nenhuma mulher perfeita o suficiente para falar o que pensa. Se for uma mulher normal, sem nenhuma plataforma em particular, ela é intolerante. Ponto final, você é intolerante. Se é uma mulher bem-informada que trabalha em uma esfera em que isso realmente teria um impacto e, por exemplo, eu vi a diretora de uma prisão se pronunciar e dizer que isso não é certo, que essas são mulheres já traumatizadas… ela foi alvo de muito assédio: “cala a boca, você não entende, o que você sabe sobre ser uma mulher trans?”. Parecia sempre haver uma maneira de calar as vozes de mulheres. As pessoas morrem de medo de se posicionar, então eu realmente comecei a sentir essa obrigação moral.

Eu sabia o que ia acontecer, mas eu pensei que há pessoas que, honestamente, provavelmente poderiam se manifestar, e não querem fazer isso, elas não querem perder o seu sustento. Mas há um monte de mulheres que são forçadas a não se manifestar porque elas literalmente não vão conseguir pagar o aluguel. Então na verdade eu queria ter entrado nessa conversa e me manifestado antes do que eu fiz. E eu fui, não impedida, sabe, eu não estou dizendo que eu não poderia ter simplesmente feito, mas pessoas próximas a mim estavam me implorando para não fazer. Eu acho que por preocupação com o que isso poderia significar. Elas tinham visto o que tinha acontecido com outras figuras públicas e havia certamente um sentimento de que isso não é algo sábio de se fazer.

Então eu vivia nesse estado, mais uma vez, na verdade, eu vivia no que eu sinto ser um estado ambíguo. Tinha essa grande preocupação, eu via mulheres serem caladas, e eu estava intimidada. Haviam empregadores sendo alvo de um movimento que eu vejo como autoritário, intolerante… Eu estava extremamente preocupada com as pessoas jovens, frequentemente o tipo de jovem que encontrou um refúgio nos meus livros. Então, sabe, tem um sentimento de empatia aí porque eu mesma fui uma jovem assim. E eu posso dizer com certeza que eu estava vivendo em um estado de tensão real parecido com quando eu estava planejando deixar o meu ex-marido, porque, apesar de eu não estar em perigo físico, eu sinto que eu estava mentindo por omissão. Eu deveria me manifestar. Eu sentia que o correto era tentar forçar essa conversa em nome das pessoas que estão sendo caladas, que não tem a minha… vamos admitir, né?

Megan: Proteção?

Rowling: É uma proteção! Mulher branca e privilegiada, totalmente! Eu estou protegida de maneiras que eu nunca imaginei que estaria protegida. É claro que eu também estou exposta a ameaças às quais outras pessoas não estariam expostas, mas é mais que isso: o que quer que aconteça, se todo mundo decidir que eu sou uma bruxa má, que nunca mais vão comprar os meus livros, eu conseguirei comprar comida pra minha família. Todo mundo sabe, eu vou ficar bem. O meu mundo não vai cair, os meus filhos não vão passar fome. Eu já vivi assim. Essa era a potencial consequência de uma decisão financeira ruim, de gastar duas libras mais do que eu podia numa semana. Então eu cheguei em um ponto de alta tensão e eu precisava falar alguma coisa.

Megan: Você está dizendo que sentia ter uma obrigação?

Rowling: Sim, chegou um ponto em que eu senti que tinha uma obrigação, porque eu senti que, sabe, mulheres estavam entrando em contato comigo – e aliás essas mulheres não estavam me dizendo “fala, fala! Fala você!”. Ninguém estava tentando me coagir. Simplesmente, eu estava falando sobre isso e o clima de medo estava me assustando mais do que a ideia de me manifestar, sabe? O que a gente está deixando acontecer? Isso é insano, que haja esse tanto de medo em torno de uma mulher que argumenta que ela tem o direito de falar da sua vida e do seu corpo da maneira que ela quiser. Isso é insanamente regressivo.

Mas, além disso, eu cheguei num ponto em que eu pensei: eu não posso continuar a viver com a consciência limpa se eu não falar alguma coisa. Então foi também uma escolha pessoal. Eu precisei me manifestar. Eu simplesmente precisei. Acredite, eu não senti nenhum prazer nisso. Não foi “oba, mal posso esperar, isso vai ser incrível!”. Eu realmente pensei: “vai ser horrível, mas eu preciso fazer isso. Eu não vou conseguir me olhar no espelho se eu não fizer”. Então… então eu fiz.

Continua no quinto episódio…

Sobre o autor

Igor Moretto

Igor já trabalhou como tradutor de conteúdo em diversos sites. Hoje, formado em Produção Audiovisual, procura alimentar o Animagos com novidades e é responsável pelo Podcast Animagos.