Ultimamente, J.K. Rowling tem sofrido ataques distorcidos à sua arte como escritora, à sua vida de filantropia e até à sua vida pessoal. Chegamos ao cúmulo de ouvir pedidos para que “tirem o Twitter dessa mulher”, ou acusação de loucura. Eu sei, eu sei. É tudo pelo humor. Mas será?
Desde 2012, com o lançamento do Pottermore, que prometia ser uma experiência imersiva conectada aos livros de “Harry Potter” com conteúdo inédito de J.K. Rowling, o público vem criticando o que chamam de “retcon”. Retcon vem de “retroactive continuity” (continuidade retroativa, em português), quando um aspecto de uma obra é alterado posteriormente ao momento em que foi estabelecido, seja lá por quê. Não é retcon porque J.K. Rowling NUNCA (atenção para essa palavra) alterou qualquer aspecto da série através de seus textos no Pottermore.
Mas, ainda assim, a crítica era válida em certo aspecto. Sentiam que, por causa das recentes atualizações ao canon, era difícil acompanhar um desenvolvimento que havia prometido concluir-se no sétimo volume da série. Até que tudo foi ladeira abaixo. Ao notar que o fandom de “Harry Potter” estava vivíssimo e muito bem de saúde, os veículos de mídia começaram a noticiar o conteúdo do Pottermore.
Colocar o nome “J.K. Rowling” seguido de “anuncia”, “revela”, “confirma”, ou qualquer verbo declarativo desses nas manchetes era a receita do sucesso! Cliques e mais cliques significavam dinheiro no bolso dos acionistas. Era uma mina de ouro! Além dos cliques, gerava-se engajamento. Milhares de comentários analisando a obra, comentando o novo fato. O fandom estava vivíssimo e muito bem de saúde.
Desde a publicação do último livro de “Harry Potter”, o mundo, e consequentemente o fandom, começou a se politizar e construir uma consciência social muito maior do que havia na época da publicação dos livros. As causas negra, feminista e LGBTQ+, depois dos levantes do final do século passado, estavam, finalmente, começando a ser tidas como movimentos importantes pela elite política e o público geral.
Rowling acompanhou a evolução do público e foi comentando sobre a extensão da representatividade em “Harry Potter” na exploração posterior do universo, depois de concluir a saga. Daí vieram as críticas. E até hoje ouvimos coisas como “se ela quer que Dumbledore seja gay, por que não colocou na obra?”
No dia 19 de outubro de 2007, Rowling estava em Nova York promovendo o lançamento de Harry Potter e as Relíquias da Morte e, quando perguntada por um fã se Dumbledore já havia amado alguém de verdade, Rowling respondeu: “Dumbledore é gay.” A platéia aplaudiu. Depois dos aplausos, a autora concluiu: “eu teria contado antes se soubesse que vocês gostariam tanto.”
Os anos 90 e o começo dos anos 2000 não foram exatamente os mais progressistas de que se tem notícia, e mesmo assim foi lá que Rowling deu a informação de que um dos personagens principais da obra infanto-juvenil mais importante da época era gay. E como ela mesma disse, se soubesse da receptividade positiva, talvez tivesse revelado antes (hipoteticamente nos livros).
Criticar Rowling por não ter falado sobre a sexualidade de Dumbledore na obra é anacrônico, pois leva em consideração o contexto em que vivemos, onde personagens gays existem em relativa abundância, e não o da época, onde o fato poderia destruir qualquer carreira por causa do apoio a causas que não fossem de agrado do grande público.
Os anos passaram, e o reacionarismo que nos trouxe ao pesadelo em que nos encontramos hoje, Bolsonaro presidente do Brasil, Trump nos Estados Unidos, Brexit na Inglaterra, etc., também floresceu no fandom. Você deve lembrar da campanha “Ele não” que fizemos nas redes sociais, que trouxe os argumentos mais impossíveis para os fãs de “Harry Potter” se sentirem confortáveis votando em Bolsonaro.
Notícias que tiravam do contexto algum trecho do Pottermore, ou que diziam que Rowling havia “anunciado” coisas que nunca nem tiveram a ver com ela, ou que eram interpretações bizarras de algum tweet sobre a escalação de Noma Dumezweni (que é negra) para o papel de Hermione Granger no teatro, enraiveceu os que não liam o texto além da manchete. Esses, os reacionários, estipularam uma nova verdade: Rowling perdeu o controle.
Esse reacionarismo trouxe consigo o gaslighting presente até hoje nas respostas de qualquer notícia com o nome de J.K. Rowling. A reação, mais do que as próprias notícias, solidificaram o ódio à autora. J.K. Rowling se tornou maluca, esclerosada, louca por dinheiro, cheia de boletos para pagar e desesperada. E o pior, as pessoas usam críticas legítimas para justificar o ódio. As pessoas dizem que o ódio é justificado por não haver personagens explicitamente LGBTQ+ em “Harry Potter”. É justificado porque ela curtiu um tweet duvidoso. É justificado porque ela folclorizou uma religião…
O reacionarismo sai da boca até dos socialmente conscientes: dos feministos, das mulheres, dos LGBTQ+. É um envergonhamento deliberado de uma pessoa que até ontem era chamada de “rainha”. É aplicada uma lógica que nem eles mesmos acham legítima. E é tudo pelo humor. Para ser cool. O grande filósofo Ranely já disse: “não gostar de algo popular não te torna automaticamente cool.”
Precisamos lembrar que Rowling saiu da lista das pessoas bilionárias da Forbes por causa de seu trabalho de filantropia. Que Rowling é fundadora de uma instituição destinada a tirar crianças de orfanatos e salvar suas famílias. Que Rowling é presidenta de uma instituição que ajuda pais e mães solteiros. Que Rowling dá todo o dinheiro que recebe por dois de seus livros para a Comic Relief, uma instituição de caridade anti-pobreza. Que Rowling foi uma das maiores doadoras para o início do Centro de Medicina Regenerativa da Universidade de Edimburgo, especializado no tratamento da esclerose múltipla.
Precisamos lembrar que Rowling ajudou a arrecadar milhões de dólares para o Dyslexia Action e o English PEN. Para a Haven Foundation e a Médicos Sem Fronteiras. Que ela doou mais de 250 mil libras para os esforços para encontrar a menina Madeleine McCann. Que doou o dinheiro arrecadado pela sua introdução a uma coleção de discursos do ex-primeiro-ministro britânico Gordon Brown para o Laboratório de Pesquisa Jennifer Brown. Que doou o equivalente à três anos de royalties de O Chamado do Cuco para a The Soldiers’ Charity.
Que tal começarmos a fazer humor com a mídia que usa do nome de Rowling para ganhar cliques? Que tal começarmos a fazer humor com o Pottermore, que é o real responsável por querer torcer até secar a franquia? Que tal começarmos a fazer humor com os responsáveis pelos filmes de “Animais Fantásticos”, que estragam os roteiros originais da autora? Que tal parar de chamar uma mulher de louca porque você viu o influencer que você gosta fazendo isso? Vamos?