Em 2000, como embaixadora da Gingerbread, J.K. Rowling contou num artigo ao jornal The Sun como foi criar sua filha sozinha e viver através de benefícios do governo, uma história que todos já sabemos mas cujos detalhes são revelados através das palavras cheias de emoção da autora. Veja a tradução completa do texto!
Fizeram com que eu me sentisse
inútil por criar meu bebê sozinha
Traduzido por Igor Moretto
As palavras “mãe solteira falida” apareceram bastante nas notícias sobre mim nos jornais. “J.K. Rowling, que era uma mãe solteira e falida que escrevia em cafés…”, seguida pelas últimas informações sobre as vendas de Harry Potter ou notícias sobre os filmes.
Bem, eu escrevi sim em cafés enquanto minha filha dormia do meu lado, eu realmente não tinha dinheiro, e eu era, e ainda sou, uma mãe solteira. Esses artigos não são mentirosos, eles só bordam de vez em quando.
“Ela escrevia em cafés para fugir de seu apartamento sem aquecimento” – quão burra eu teria que ser para alugar um apartamento sem aquecimento em Edimburgo? Eu escrevo em cafés porque gosto que me façam café.
Eu também fico triste com o fato de ninguém estranhar as palavras “falida” e “solteira” juntas numa frase. As pessoas parecem que aceitam que essas duas coisas geralmente façam sentido juntas. Eu não achei que eu fosse ser uma mãe solteira. Fui criada numa família com dois pais e sempre achei que criaria meus filhos do mesmo jeito que meus pais me criaram. Nunca houve um divórcio na minha família e eu nunca achei que eu fosse ser a pessoa que quebraria essa tradição.
Sempre que eu me imaginava como uma mãe, o pai sempre estava do meu lado (exatamente igual ao Nicolas Cage – sempre tive uma imaginação vívida). Me casei quando tinha 27 anos e logo depois fiquei grávida. Dei à luz Jéssica num dia maravilhoso e ensolarado em Porto, Portugal – o melhor dia da minha vida. Três meses depois, no entanto, o futuro que eu previ para nós duas se desmoronou – meu casamento acabou.
Estava tão ocupada fazendo planos para voltar pra Grã-Bretanha, comprar coisas que eu fosse precisar pra minha filha, finalizando minha vida em Portugal pronta para minha nova vida em casa, que acho que a ficha da minha situação não caiu até um dia depois da minha chegada em Edimburgo.
Dois dias antes do Natal de 1993, sentei numa sala do Escritório de Segurança Social e percebi que eu estava prestes a começar a viver com 70 libras por semana – 70 libras para alimentar e vestir a mim e a minha filha e pagar nossas contas. Tinha dinheiro suficiente para depositar um pouco para pegar um apartamento. Tinha só um quarto e outra parte que era a sala e a cozinha juntas. O melhor que você pode falar do apartamento é que ele também tinha um teto.
Eu lembro de ter me persuadido que quando eu pintasse o apartamento ele ficaria muito bom. Tudo ficaria bem – ia começar a dar aulas de novo. Não ficaríamos lá por muito tempo. Jurei a mim mesma que terminaria meu livro enfim. Iam haver várias noites nas quais (e essas noites se estenderam a quase um ano) eu teria muito tempo para me concentrar. Se eu me concentrasse direito talvez conseguisse esquecer os barulhos dos ratos e do chão barulhento. No fundo de todo esse otimismo forçado existia uma voz que dizia, “pra onde você trouxe sua filha?”
Você tem que preencher muitos documentos para poder receber os benefícios do governo. Tem que ser entrevistado e explicar para muita gente estranha como você se tornou falida e o único pai de sua filha. Eu sei que ninguém estava querendo fazer eu me sentir humilhada ou inútil, mas foi exatamente assim que me senti.
Quando fui pegar o dinheiro da primeira semana, senti como se tivesse uma seta de neon gigante apontando pra minha cabeça no correio. Tirei o livro de benefícios só quando cheguei no balcão e dei para o atendente bem rápido esperando que ninguém percebesse o que era. Não sei o que as velhas atrás de mim diriam se vissem o livro – “escória”, “vagabunda” e “fardo da sociedade?” Era assim que as pessoas como eu eram desenhadas pelos jornais e televisão. De acordo com um discurso do John Major feito logo depois que eu cheguei na Grã-Bretanha, a indisciplina nas crianças da época era culpa das mães solteiras. Que ótimo foi.
Pintei o apartamento infestado de ratos e mesmo assim continuou horrível, só um pouco mais branco. Seis meses ali eram o suficiente. Engoli meu orgulho e telefonei a um amigo que tinha me oferecido dinheiro. Pedi 600 libras emprestado. Parecia uma fortuna e eu me senti horrível pedindo. O cheque chegou no dia seguinte, achei que todos os nossos problemas tinham se resolvido.
Comecei a telefonar para agências de locação para ver o que eu poderia alugar. Nesse ponto tive um problema que eu não esperava. Vozes chatas do outro lado da linha falavam: “Não alugamos para pessoas com benefícios do governo, desculpe.” Não conseguia entender. Devo ter ligado para umas 12 agências. O último número que liguei foi atendido por uma mulher que disse que também não alugava para pessoas com benefícios do governo – mas ela soou muito mais compadecida, ao invés de chata. Vi um pequeno raio de esperança.
Comecei a falar tão rápido que ela não conseguia nem falar nada. Eu disse que achava que as agências viam pessoas com benefícios como mau inquilinos, mas eu não era uma má inquilina. Eu era uma pessoa responsável que pagava as contas e cuidava da casa e que queria uma chance de demonstrar aquilo. Tagarelei demais. Graças a Deus ela desistiu. “Tá bom, venha me encontrar.” Ela me mostrou dois apartamentos na mesma tarde. Eu peguei o segundo. Era quente, limpo e (um pequeno problema) sem móveis. Meus amigos em Edimburgo me deram tudo o que podiam de móveis. Ainda era meio vazio, mas eu prefiro chamar de “minimalista.”
Consegui um trabalho de secretária por duas horas por semana. Só ganhava 15 libras por semana porque qualquer coisa acima disso seria deduzido do meu benefício. As 15 libras fizeram diferença. Não tinha mais que roubar papel higiênico das salas de trocar bebês no fim da semana. Queria trabalhar mais.
Perguntei à minha consultora de saúde se existia alguma possibilidade de uma vaga na creche do estado, por uma tarde por semana. “Você está lidando bem demais,” ela disse tristonha – quantas vezes ela ouvia mães querendo trabalhar? “Os únicos bebês que conseguem vaga tendem a ser aqueles que estão em risco.” Eu gostava muito da minha consultora de saúde e gostava da possibilidade de ter alguém com quem conversar. Percebia que ela sentia compaixão para comigo, o que nunca é um sentimento muito legal, mas nesse ponto todo meu orgulho tinha sido arrancado de mim, então não me preocupei muito.
A única vez que realmente me chateou foi quando ela veio e trouxe alguns brinquedos usados para a Jessica. Ainda consigo vê-los – um ursinho de pelúcia velho, uma casinha de plástico sem as pessoas de plástico que moravam nela e um telefone. Se eu tinha me sentido humilhada antes, não foi nada parecido com o que eu senti quando vi aquele ursinho. Não dei pra Jessica, coloquei num saco de lixo e fingi que não existia.
Me inscrevi para uma pós-graduação de Educação para poder dar aula na Escócia. Fui aceita – a luz no fim do túnel finalmente! Aí encontrei outro problema, um problemão. Eu achava que tinha uma creche para os estudantes da universidade usarem. “É, fechou,” disse uma outra voz chata do outro lado da linha. Foi um dos piores momentos da minha vida. Eu tinha que fazer aquele curso. Era o único jeito. Se eu fizesse o curso eu seria uma professora qualificada. Não precisaria mais dos benefícios pro resto da vida, e o governo receberia de volta tudo o que me deu em formato de impostos. A creche estadual não podia me dar nem metade do tempo que eu precisaria para estudar.
Telefonei para creches particulares – para cuidados durante os três períodos eu precisaria de algo entre 3.500 e 5.000 libras. Eles podiam ter me pedido um milhão de libras. Nenhuma autoridade aceitou me dar ou emprestar dinheiro para creche, e eu telefonei para todos que eu pude. Um outro amigo veio ao resgate.
Mesmo chorando muito agradecida nos ombros desse amigo, eu sabia quão sortuda eu era – sabia que a maioria das pessoas nessa situação não teriam um amigo que pudesse emprestar essa quantidade de dinheiro. Emprestei mais dinheiro para poder comprar livros e pagar a escola onde faria o treinamento para educar. Eu sabia que teria que pagar as dívidas como uma professora qualificada sem filhos. Se minha filha fosse à escola, eu automaticamente perderia o direito dela de alimentação gratuita porque não vivia mais com benefícios.
O ano do meu curso foi o mais difícil da minha vida em termos de estresse, mas eu teria cerrado minha perna antes de desistir. Ensinar seria nosso caminho para sair dos benefícios e da pobreza. Terminei Harry Potter e a Pedra Filosofal nessa época, mas as editoras negavam. Tinha que aceitar que eu teria que desistir do sonho da minha vida – ou deixar para depois de minha filha sair de casa. Não ia ter tempo de escrever livros enquanto tivesse que preparar aulas e corrigir tarefas todos os dias.
Contei o resto dessa história centenas de vezes, então vou pular um pouco. Assim que comecei a dar aula em um período, uma editora aceitou o livro. E quando terminei meu contrato de estágio o livro estava à venda. Três meses depois, ele foi vendido a uma editora americana e tão inesperadamente quanto foi ter me tornado uma mãe solteira, saímos dos benefícios de uma vez.
Seria uma atenuação se eu dissesse que a maioria dos pais solteiros não tem essa sorte. Seis dentre três famílias britânicas com pais solteiros vive na pobreza. Eles tentam fazer o dinheiro durar até o fim da semana, fazendo os mesmos telefonemas desesperados que eu fazia, perguntando o porquê de existir tantos obstáculos em seus caminhos quando tudo o que estão tentando fazer é cuidar dos seus filhos da melhor maneira possível.
Existe uma lenda que diz que a maioria dos pais solteiros é de adolescentes irresponsáveis que querem apartamentos. A verdade é que só três por cento dos pais solteiros são adolescentes. Sessenta por cento de nós se casou e se separou, divorciou ou é viúvo. Quase um quarto das crianças britânicas vive em famílias de pais solteiros. Isso significa que muitas crianças vivem na pobreza porque os pais estão presos nas mesmas armadilhas que eu fiquei presa e onde ainda estaria se não fosse por amigos generosos e uma editora que gostou de Harry Potter.
Fico muito orgulhosa de verdade de ser a nova embaixadora do Conselho Nacional dos Pais Solteiros. A gente vem de todo tipo de caminho da vida e queremos exatamente as mesmas coisas que os pais em casais querem – a chance de dar o que pudermos a nossos filhos. Nós estamos todos fazendo o trabalho de duas pessoas com uma só mão antes de começar a procurar por empregos pagantes e, como descobri, temos que lutar duas vezes mais forte para chegar na metade do caminho.
Esse texto é o quarto de uma coleção especial de artigos escritos por J.K. Rowling e mencionados no livro “J.K. Rowling: A Bibliography 1997-2013”. O Animagos retoma esse projeto de tradução e publicação com muito entusiasmo, e espera que os visitantes apreciem o conteúdo! Deixe seu comentário e feedback! Outros textos já traduzidos podem ser encontrados aqui.