Como tentativa de explicar seu posicionamento a respeito dos direitos das pessoas transgênero, a autora J.K. Rowling publicou na tarde de hoje (10), em seu site oficial, um longo ensaio em que explica com detalhes os motivos de seus pontos de discordância com o movimento trans e o porquê de falar sobre o assunto.
No último sábado, Rowling havia reavivado seu polêmico posicionamento a respeito dos direitos das pessoas transgênero no Reino Unido. O país vem passando por uma discussão mais intensa quanto a essa questão porque está discutindo a atualização do Gender Recognition Act, que foi atualizado pela última vez em 2004, para torná-lo mais inclusivo para as pessoas trans.
Enquanto checava os desenhos feitos pelas crianças do mundo todo de seu livro infantil mais recente, O Ickabog, Rowling se deparou com um artigo de opinião chamado Criando um mundo pós-Covid-19 mais igualitário para as pessoas que menstruam e criticou o termo “pessoas que menstruam” para se referir ao que, tradicionalmente, são as mulheres. Ela falou:
‘People who menstruate.’ I’m sure there used to be a word for those people. Someone help me out. Wumben? Wimpund? Woomud?
Opinion: Creating a more equal post-COVID-19 world for people who menstruate https://t.co/cVpZxG7gaA
— J.K. Rowling (@jk_rowling) June 6, 2020
“Pessoas que menstruam”? Eu poderia jurar que já existia um termo para essas pessoas. Alguém me ajuda aí. Wumben*? Wimpund*? Woomud*?
*Nota do tradutor: são variações propositais de “woman”, alguns parecem fazer relação com womb (útero), wimp (covarde) e mud (lama).
Em seguida, respondendo a alguns internautas que reagiram negativamente ao seu tweet:
Passei grande parte dos últimos três anos lendo livros, blogs e artigos científicos escritos por pessoas trans, médicos e especialistas de gênero. Sei exatamente qual é a distinção. Nunca assuma que, por uma pessoa pensar diferente de você, ela não tem conhecimento.*
*Nota: resposta a um tweet excluído, mas provavelmente dizia para a autora se informar mais sobre a distinção que existe entre “sexo” e “gênero”.
Uma das minhas melhores amigas acabou de me ligar. Ela é, como ela mesma diz, uma lésbica caminhoneira. Não ouvi direito, porque ela estava gritando bastante, mas apenas distingui ela falando “ISSO AÍ, PORRA!”.*
*Nota: resposta a um usuário que pede para ela conversar com alguém do meio LGBT+.
Por fim, além de compartilhar algumas respostas e artigos que endossam seu posicionamento, ela escreveu:
If sex isn’t real, there’s no same-sex attraction. If sex isn’t real, the lived reality of women globally is erased. I know and love trans people, but erasing the concept of sex removes the ability of many to meaningfully discuss their lives. It isn’t hate to speak the truth.
— J.K. Rowling (@jk_rowling) June 6, 2020
Se sexo não é real, não existe atração pelo mesmo sexo. Se sexo não é real, a realidade vivida pelas mulheres do mundo todo é apagada. Conheço e amo pessoas trans, mas apagar o conceito de sexo remove a habilidade de muitas pessoas de, de fato, discutirem suas vidas. Não é ódio falar a verdade. A ideia de que mulheres como eu, que são solidárias a pessoas trans por décadas, sentindo afinidade porque são vulneráveis da mesma forma que as mulheres, por exemplo, à violência masculina, “odiarem” pessoas trans porque acham que sexo é real e tem consequências na vida é um disparate. Respeito todo direito das pessoas trans de viverem da forma que parecerem autênticas e confortáveis a elas. Protestaria com vocês se fossem discriminados por serem trans. Ao mesmo tempo, minha vida foi moldada como mulher. Não acredito que seja odioso dizer isso.
A reação dos internautas se dividiu entre os poucos que apoiavam o discurso da autora e os discordantes. No último grupo, uma série de contra-argumentos aos seus posicionamentos foram apresentados, incluindo os de personalidades do mundo bruxo e marcas relacionads, como a Warner Bros., a Universal Parks & Resorts, Daniel Radcliffe, Emma Watson, Eddie Redmayne e Evanna Lynch; no entanto, também houve uma enxurrada de ataques por parte de alguns ativistas trans como tentativa de silenciar a autora.
No meio de toda essa história, surgiu ainda a “denúncia” de que Rowling teria se inspirado em um psiquiatra americano defensor da “cura gay” para criar o pseudônimo de Robert Galbraith, mesmo a autora já tendo dito abertamente de onde tirou a inspiração, e esse nome não ser incomum nos países de língua inglesa, demonstrando um anseio de invalidar seu discurso a qualquer custo.
Como reação a todos esses ataques, a autora publicou uma longa nota em seu site oficial para esclarecer seu ponto de vista e explicar, de forma finalmente transparente e respeitosa, como o assunto merece, qual é seu real posicionamento em relação aos direitos das pessoas trans.
Abaixo, trazemos o ensaio na íntegra para que você faça suas próprias conclusões. No futuro, tentaremos trazer um episódio do nosso podcast dedicado inteiramente à resposta da autora, contando com nossas opiniões. Pedimos aos nossos leitores que tratem a autora de forma respeitosa e mantenham um ambiente de discussão saudável no tocante a este tema. Agradecemos! E se você for uma pessoa trans que quer participar do nosso podcast, envie um e-mail para contato@animagos.com.br.
J.K. Rowling escreve sobre suas razões em se posicionar sobre questões de sexo e gênero
Tradução: Renato Delgado
Revisão: Igor Moretto
Aviso: Este artigo contém linguagem inapropriada para crianças.
Não é fácil escrever este artigo, por razões que ficarão claras em breve, mas sei que é hora de me explicar sobre um problema cercado de toxicidade. Escrevo isso sem nenhum desejo de inflamar essa toxicidade.
Para as pessoas que não sabem: em dezembro do ano passado, twittei meu apoio a Maya Forstater, uma tributarista que havia perdido o emprego pelo que eram considerados tweets “transfóbicos”. Ela levou o caso a um tribunal do trabalho, pedindo ao juiz para decidir se uma crença filosófica de que o sexo é determinado pela biologia é protegida por lei. O juiz Tayler decidiu que não era.
Meu interesse pelas questões trans antecede o caso de Maya por quase dois anos, durante os quais acompanhei de perto o debate sobre o conceito de identidade de gênero. Conheci pessoas trans e li vários livros, blogs e artigos de pessoas trans, especialistas em gênero, pessoas intersexo, psicólogos, especialistas em salvaguarda [NT: salvaguarda, no Reino Unido e Irlanda, são medidas para proteger a saúde, o bem-estar e os direitos humanos dos indivíduos que permitem que, sobretudo crianças, jovens e adultos vulneráveis, vivam livres de abuso, dano e negligência], assistentes sociais e médicos, e acompanhei o discurso online e na mídia tradicional. De certo modo, meu interesse por essa questão tem sido profissional, porque estou escrevendo uma série de livros de crime ambientada nos dias de hoje, e minha detetive fictícia tem idade para se interessar e ser afetada por essas questões, mas, de outro, é intensamente pessoal, como estou prestes a explicar.
Enquanto pesquisava e aprendia, acusações e ameaças de ativistas trans borbulhavam na minha timeline no Twitter. Isso foi inicialmente desencadeado por um like que dei. Quando comecei a me interessar por questões de identidade de gênero e transgêneros, comecei a dar prints de comentários que me interessavam, como uma maneira de me lembrar do que eu poderia querer pesquisar mais tarde. Em uma ocasião, distraidamente “curti” em vez de dar print. Esse único “like” foi considerado como evidência de uma opinião errada, e um nível baixo e persistente de assédio começou.
Meses depois, juntei meu crime acidental do “like” seguindo Magdalen Burns no Twitter. Magdalen era uma jovem feminista e lésbica imensamente corajosa que estava morrendo de um tumor cerebral agressivo. Eu a segui porque queria entrar em contato direto com ela, o que consegui fazer. No entanto, como Magdalen acreditava muito na importância do sexo biológico e não acreditava que lésbicas deviam ser chamadas de preconceituosas por não namorar mulheres trans com pênis, ativistas trans do Twitter ligaram os pontos e o nível de abuso nas mídias sociais aumentou.
Menciono tudo isso apenas para explicar que sabia perfeitamente o que iria acontecer ao apoiar Maya. Eu devia estar no meu quarto ou quinto cancelamento até então. Eu esperava as ameaças de violência, ouvir que eu estava literalmente matando pessoas trans com o meu ódio, ser chamada de “cunt” [NT: a palavra é um xingamento misógino da língua inglesa que literalmente significa “vagina”] e, é claro, que meus livros fossem queimados, embora um homem particularmente abusivo tenha me dito que ele havia os usado como esterco.
O que eu não esperava depois do meu cancelamento foi a avalanche de e-mails e cartas que choviam, a maioria esmagadora positiva, agradecida e solidária. Elas vieram de um grupo de pessoas gentis, empáticas e inteligentes, algumas delas trabalhando em áreas que lidam com disforia de gênero e pessoas trans, que estão profundamente preocupadas com a maneira como um conceito sociopolítico está influenciando a política, a prática médica e a salvaguarda. Eles estão preocupados com os perigos para jovens, gays e com a perda dos direitos das mulheres e meninas. Acima de tudo, eles estão preocupados com um clima de medo que não beneficia a ninguém – muito menos aos jovens trans.
Eu já havia me afastado do Twitter muitos meses antes e depois de twittar o apoio a Maya, porque sabia que não estava sendo nada positivo para minha saúde mental. Só voltei porque queria compartilhar um livro infantil gratuito durante a pandemia. Imediatamente, ativistas que claramente se consideram pessoas boas, gentis e progressistas voltaram à minha linha do tempo, achando que tinham o direito de policiar meu discurso, me acusando de ódio, se referindo a mim com insultos misóginos e, acima de tudo – como toda mulher envolvida neste debate vai saber –, “TERF”.
Se você ainda não sabia – e por que deveria? – “TERF” é um acrônimo cunhado por ativistas trans que significa Trans-Exclusionary Radical Feminist (feminista radical trans-excludente). Na prática, um enorme e diversificado grupo de mulheres está sendo chamado de “TERFs” e a grande maioria nunca nem foi feminista radical. Exemplos de “TERFs” variam desde a mãe de uma criança gay que temia que seu filho quisesse fazer uma transição para escapar do bullying homofóbico, até uma senhora mais velha, que até agora não era feminista, que jurou nunca mais visitar a Marks & Spencer porque essa loja permitia que qualquer homem que diz se identificar como mulher entre nos provadores das mulheres. Ironicamente, feministas radicais nem são trans-excludentes – elas incluem homens trans em seu feminismo, porque nasceram mulheres.
Mas as acusações de TERFismo foram suficientes para intimidar muitas pessoas, instituições e organizações que eu admirava, que se acovardam diante dos “donos da bola”. “Eles vão nos chamar de transfóbicos!” “Eles vão dizer que eu odeio pessoas trans!” E depois, o quê? Eles vão dizer que você tem pulgas? Falando como uma mulher biológica, muitas pessoas em posições de poder realmente precisam “virar homem” (o que é, sem dúvida, literalmente possível, de acordo com o tipo de gente que argumenta que o peixe-palhaço é a prova de que os seres humanos não são uma espécie dimórfica).
Então, por que estou fazendo isso? Por que me posicionar? Por que não fazer minha pesquisa em silêncio e manter a cabeça baixa?
Bem, tenho cinco razões para me preocupar com o novo ativismo trans e decidi que preciso me posicionar.
Em primeiro lugar, tenho uma instituição de caridade que se preocupa em suavizar a privação social na Escócia, com ênfase particular em mulheres e crianças. Entre outras coisas, minha instituição apoia projetos para prisioneiras e sobreviventes de abuso doméstico e sexual. Também financio pesquisas médicas sobre a esclerose múltipla, uma doença que se comporta de maneira muito diferente em homens e mulheres. Está claro para mim há algum tempo que o novo ativismo trans está tendo (ou é provável que tenha, se todas as suas demandas forem atendidas) um impacto significativo em muitas das causas que eu apoio, porque está fazendo pressão para se corroer a definição legal de sexo e substituí-la por gênero.
A segunda razão é que sou ex-professora e fundadora de uma instituição de caridade infantil, que me faz ter interesse tanto pela educação quanto pela salvaguarda. Como muitas outras pessoas, tenho profundas preocupações com o efeito que o movimento pelos direitos trans está causando em ambos.
A terceira é que, como uma escritora que sempre foi muito proibida, tenho interesse na liberdade de expressão e a defendi publicamente, até para Donald Trump.
Na quarta é onde as coisas começam a ficar verdadeiramente pessoais. Estou preocupada com a enorme explosão de mulheres jovens que desejam fazer transições e também com o número crescente de pessoas que parecem estar se destransicionando (retornando ao sexo original), porque se arrependem de tomar medidas que, em alguns casos, alteraram seu corpo irrevogavelmente, e tiraram sua fertilidade. Algumas pessoas dizem que decidiram fazer a transição depois de perceberem que eram atraídas pelo mesmo sexo, e que a transição foi parcialmente motivada pela homofobia, na sociedade ou em suas famílias.
A maioria das pessoas provavelmente não está ciente – eu certamente não estava, até começar a pesquisar adequadamente esse problema – de que dez anos atrás, a maioria das pessoas que desejavam fazer a transição para o sexo oposto eram homens. Essa proporção agora foi invertida. O Reino Unido registrou um aumento de 4400% de meninas encaminhadas para tratamento de transição. As meninas autistas são extremamente super-representadas em seus números.
O mesmo fenômeno foi visto nos EUA. Em 2018, a médica e pesquisadora americana Lisa Littman decidiu explorá-lo. Em uma entrevista, ela disse:
“Pela internet, os pais estavam descrevendo um padrão muito incomum de identificação de transgêneros, em que vários amigos e até grupos inteiros de amigos se identificaram ao mesmo tempo. Eu teria sido negligente se não considerasse o contágio social e as influências de colegas como fatores potenciais.”
Littman mencionou o Tumblr, o Reddit, o Instagram e o YouTube como fatores contribuintes para a Disforia de Gênero de Surgimento Repentino, onde ela acredita que, no campo da identificação de transgêneros, “a juventude criou bolhas sociais particularmente insulares”.
O artigo dela causou furor. Ela foi acusada de preconceito e de disseminar informações erradas sobre pessoas trans, foi sujeitada a um tsunami de abuso e a uma campanha organizada para desacreditar tanto ela quanto seu trabalho. A revista tirou o artigo do ar e passou por uma segunda revisão antes de republicá-lo. No entanto, sua carreira teve um impacto semelhante ao sofrido por Maya Forstater. Lisa Littman ousou desafiar um dos princípios centrais do ativismo trans, que é que a identidade de gênero de uma pessoa é inata, como a orientação sexual. Ninguém, os ativistas insistiram, poderia ser persuadido a ser trans.
O argumento de muitos ativistas trans de hoje em dia é que se você não deixar um ou uma adolescente com disforia de gênero fazer a transição, ela ou ele vai se matar. Em um artigo explicando por que ele se demitiu da Tavistock (uma clínica de gênero do sistema público de saúde da Inglaterra), o psiquiatra Marcus Evans afirmou que as alegações de que as crianças se matarão se não as deixarem transicionar não “se alinham substancialmente com dados ou estudos robustos nesta área. Nem se alinham com os casos que encontrei ao longo de décadas como psicoterapeuta”.
Os escritos de jovens homens trans revelam um grupo de pessoas notavelmente sensível e inteligente. Quanto mais lia seus relatos de disforia de gênero, com suas descrições perspicazes de ansiedade, dissociação, distúrbios alimentares, automutilação e auto-ódio, mais me perguntei se, se eu tivesse nascido 30 anos depois, eu também não poderia ter tentado transicionar. O fascínio de escapar do mundo feminino teria sido enorme. Lutei contra um TOC severo quando era adolescente. Se eu tivesse encontrado uma comunidade e compreensão na internet, do tipo que eu não poderia encontrar no meu ambiente imediato, acredito que eu poderia ter sido persuadida a me transformar no filho que meu pai tinha dito abertamente que teria preferido.
Quando leio sobre a teoria da identidade de gênero, lembro-me de como me sentia mentalmente sem sexo na juventude. Lembro-me da autodescrição de Colette de como uma “hermafrodita mental” e as palavras de Simone de Beauvoir: “É perfeitamente natural para a futura mulher se sentir indignada com as limitações colocadas sobre ela por seu sexo. A verdadeira questão não é por que ela deve rejeitá-las: o problema é, na verdade, entender por que ela as aceita.”
Como eu não tinha uma possibilidade realista de me tornar um homem nos anos 80, foram os livros e a música que me fizeram passar por meus problemas de saúde mental e o escrutínio e julgamento sexualizados que colocam tantas garotas em guerra contra seus corpos na adolescência. Felizmente para mim, encontrei meu próprio senso de alteridade, e minha ambivalência sobre ser mulher, refletida no trabalho de escritoras e músicas que me asseguraram que, apesar de tudo que um mundo machista tenta jogar no corpo feminino, está tudo bem não se sentir rosa, com babados e dócil dentro de sua própria cabeça; tudo bem se sentir confusa, triste, tanto sexualmente como não, e insegura sobre o que ou quem você é.
Quero ser bem clara aqui: Sei que a transição será uma solução para algumas pessoas disfóricas de gênero, embora eu também esteja ciente, através de extensas pesquisas, que estudos têm consistentemente mostrado que entre 60 e 90% dos ou das adolescentes com disforia de gênero vão amadurecer e abandonar sua disforia. Repetidas vezes me disseram: “apenas conheça algumas pessoas trans”. Eu conheci: além de algumas pessoas mais jovens, todas adoráveis, eu conheço uma mulher transexual autodeclarada que é mais velha do que eu e maravilhosa. Embora ela seja aberta sobre seu passado como um homem gay, sempre achei difícil pensar nela como qualquer outra coisa que não fosse uma mulher, e acredito (e certamente espero) que ela esteja completamente feliz por ter feito a transição. Por ser mais velha, porém, ela passou por um longo e rigoroso processo de avaliação, psicoterapia e transformação gradual. A atual explosão do ativismo trans luta pela remoção de quase todos os sistemas robustos através dos quais os candidatos à redesignação sexual já foram obrigados a passar. Um homem que pretende não fazer cirurgia e não tomar hormônios pode agora garantir um Certificado de Reconhecimento de Gênero e ser uma mulher à vista da lei. Muitas pessoas não estão cientes disso.
Estamos vivendo o período mais misógino que já experienciei. Nos anos 80, imaginei que minhas futuras filhas, se eu tivesse alguma, teriam uma vida muito melhor do que já tive, mas entre a reação contra o feminismo e uma cultura online saturada de pornografia, acredito que as coisas pioraram significativamente para as meninas. Nunca vi mulheres difamadas e desumanizadas na medida em que estão agora. Desde a longa história de acusações de agressão sexual do presidente dos Estados Unidos e seu orgulho exaltado em “agarrá-las pela boceta”, até o movimento incel (celibatário involuntário) que se enfurece contra mulheres que não lhes dão sexo, para os ativistas trans que declaram que TERFs precisam de socos e reeducação, homens de todo o espectro político parecem concordar: as mulheres estão atrás de confusão. Em todos os lugares, as mulheres estão sendo instruídas a calar a boca e se sentar, ou sofrerão as consequências.
Eu li todos os argumentos sobre a feminilidade não residir no corpo sexual, e as afirmações de que mulheres biológicas não têm vivências em comum, e eu também as acho profundamente misóginas e regressivas. Também é claro que um dos objetivos de negar a importância do sexo é corroer o que alguns parecem ver como a ideia cruelmente segregacionista de mulheres terem suas próprias realidades biológicas ou – tão ameaçador quanto – unificar realidades que as tornam uma classe política coesa. As centenas de e-mails que recebi nos últimos dias provam que essa corrosão preocupa muitas outras pessoas. Não basta às mulheres serem aliadas das pessoas trans. As mulheres devem aceitar e admitir que não há diferença material entre as mulheres trans e elas mesmas.
Mas, como muitas mulheres disseram antes de mim, “mulher” não é uma fantasia. “Mulher” não é uma ideia na cabeça de um homem. “Mulher” não é um cérebro rosa, gostar de usar sapatos de grife ou qualquer outra ideia sexista agora de alguma forma apontada como progressiva. Além disso, muitas mulheres veem a linguagem “inclusiva” que chama as pessoas do sexo feminino de “menstruadoras” e “pessoas com vulvas” desumanizante e humilhante. Entendo por que ativistas trans consideram essa linguagem apropriada e gentil, mas para aquelas que já ouviram tantos insultos degradantes serem cuspidos por homens violentos, essa linguagem não é neutra: é hostil e alienante.
O que me leva à quinta razão pela qual estou profundamente preocupada com as consequências do atual ativismo trans.
Sou uma pessoa pública há mais de vinte anos e nunca falei publicamente sobre ser uma sobrevivente de abuso doméstico e agressão sexual. Não é porque tenho vergonha que essas coisas tenham acontecido comigo, mas porque são traumáticas de revisitar e lembrar. Também sinto que devo proteger a minha filha do meu primeiro casamento. Eu não queria reivindicar a propriedade exclusiva de uma história que também pertence a ela. No entanto, há pouco tempo, perguntei como ela se sentiria se eu fosse publicamente honesta sobre essa parte da minha vida, e ela me encorajou a isso.
Estou mencionando essas coisas agora não em uma tentativa de angariar simpatia, mas por solidariedade com o grande número de mulheres que têm histórias como a minha, que foram chamadas de preconceituosas por se preocuparem com espaços de sexo único.
Consegui escapar do meu primeiro casamento violento com alguma dificuldade, mas agora estou casada com um homem verdadeiramente bom e de princípios, estou segura de uma forma que nunca esperei estar em um milhão de anos. No entanto, as cicatrizes deixadas pela violência e agressão sexual não desaparecem, não importa o quão amada você seja, e não importa quanto dinheiro você ganhou. Meu nervosismo constante é uma piada na família – e até eu sei que é engraçado – mas rezo para que minhas filhas nunca tenham as mesmas razões que eu para odiar barulhos altos e repentinos, ou para odiar me deparar com pessoas atrás de mim quando não as ouvi se aproximando.
Se você pudesse entrar na minha cabeça e entender o que eu sinto quando leio sobre uma mulher trans morrendo nas mãos de um homem violento, você encontraria solidariedade e afinidade. Eu tenho uma sensação visceral do terror pelo qual essas mulheres trans passaram nos seus últimos segundos na Terra, porque eu também conheci momentos de medo irracional quando percebi que a única coisa que me mantinha viva era a autocontenção instável do meu agressor.
Acredito que a maioria das pessoas que se identificam como trans não só representam nenhuma ameaça aos outros, mas são vulneráveis por todas as razões que esbocei. Pessoas trans precisam e merecem proteção. Como as mulheres, eles e elas têm mais chance de serem assassinados e assassinadas pelos seus parceiros sexuais. Mulheres trans que trabalham na indústria do sexo, principalmente mulheres trans negras, correm um risco em especial. Como todos os outros sobreviventes de abuso doméstico e agressão sexual que conheço, sinto apenas empatia e solidariedade por mulheres trans que foram abusadas por homens.
Então eu quero que as mulheres trans fiquem em segurança. Ao mesmo tempo, não quero deixar as meninas e mulheres de nascença menos seguras. Quando você abre as portas de banheiros e vestiários para qualquer homem que acredite ou sinta que é uma mulher – e, como eu disse, os certificados de confirmação de gênero podem agora ser concedidos sem qualquer necessidade de cirurgia ou hormônios – então você abre a porta para todo e qualquer homem que deseja entrar. Essa é a simples e pura verdade.
No sábado de manhã, li que o governo escocês está seguindo com seus controversos planos de reconhecimento de gênero, o que significa que tudo o que um homem precisa para “se tornar uma mulher” é dizer que ele é uma. Para usar uma palavra muito contemporânea, isso foi um “gatilho” para mim. Aterrada pelos ataques implacáveis de ativistas trans nas redes sociais, quando eu estava lá apenas para dar um retorno às crianças sobre fotos que tinham desenhado para o meu livro sob confinamento, passei grande parte do sábado em um lugar muito sombrio dentro da minha cabeça, enquanto memórias de uma grave agressão sexual que sofri aos vinte anos vinham na mente em loop. Esse ataque aconteceu em um momento e em um espaço em que eu estava vulnerável, e um homem se aproveitou disso. Eu não podia apagar essas memórias e estava achando difícil conter minha raiva e decepção sobre a maneira como eu acredito que meu governo está brincando levianamente com a segurança das mulheres e meninas.
No final da noite de sábado, enquanto via os desenhos das crianças antes de ir me deitar, esqueci a primeira regra do Twitter – nunca, nunca, nunca espere uma conversa com nuances – e reagi ao que eu sentia ser uma linguagem degradante sobre as mulheres. Falei sobre a importância do sexo e tenho pagado o preço desde então. Eu era transfóbica, eu era uma “cunt”, uma “bitch” [NT: em português, literalmente “cadela”, mas tem uma conotação parecida com a da palavra “vadia”], uma TERF, eu merecia ser cancelada, socada e morrer. “Você é Voldemort”, disse uma pessoa, claramente sentindo que essa era a única língua que eu entenderia.
Seria muito mais fácil twittar as hashtags aprovadas – porque, claro, direitos trans são direitos humanos e, claro, vidas trans importam – e receber os louros pela sinalização da minha virtude. Há alegria, alívio e segurança na conformidade. Como Simone de Beauvoir também escreveu: “…sem dúvida, é mais confortável suportar a sujeição irracional do que trabalhar para a libertação; os mortos, também, são mais adequados para a terra do que os vivos.”.
Um grande número de mulheres está justificadamente aterrorizada pelos ativistas trans; eu sei disso porque muitas entraram em contato comigo para contar suas histórias. Elas têm medo de ter seus dados pessoais vazados, de perder seus empregos ou seus meios de subsistência, e de violência.
Ainda que seja infinitamente desagradável estar sempre na mira, me recuso a me curvar a um movimento que acredito estar causando danos demonstráveis ao tentar corroer a “mulher” como classe política e biológica e oferecendo cobertura a predadores como poucas vezes visto. Estou ao lado das corajosas mulheres e homens, gays, heterossexuais e trans, que defendem a liberdade de expressão e pensamento, e pelos direitos e segurança de alguns dos mais vulneráveis em nossa sociedade: jovens gays, adolescentes frágeis e mulheres que dependem e desejam manter seus espaços sexuais únicos. Pesquisas mostram que essas mulheres são a grande maioria, e excluem apenas aquelas privilegiadas ou sortudas o suficiente para nunca terem se deparado com a violência masculina ou a agressão sexual, e que nunca se preocuparam em se educar sobre o quão comum é.
A única coisa que me dá esperança é que as mulheres que podem protestar e se organizar o estão fazendo, e elas têm homens e pessoas trans realmente decentes ao lado delas. Os partidos políticos que buscam apaziguar as vozes mais altas neste debate estão ignorando as preocupações das mulheres por sua conta e risco. No Reino Unido, as mulheres estão se comunicando e cruzando as linhas partidárias, preocupadas com a perda de seus direitos, conquistados com tanta luta, e a intimidação generalizada. Nenhuma das mulheres que criticam a questão de gênero com quem conversei odeia pessoas trans; pelo contrário. Muitas delas se interessaram por essa questão, em primeiro lugar, por preocupação com a juventude trans, e elas são extremamente solidárias às mulheres adultas trans que simplesmente querem viver suas vidas, mas que estão enfrentando uma reação por um tipo de ativismo que não endossam. A ironia suprema é que a tentativa de silenciar as mulheres com a palavra “TERF” pode ter empurrado mais mulheres jovens para o feminismo radical do que o movimento viu em décadas.
A última coisa que eu quero dizer é isto: Eu não escrevi este artigo na esperança de que alguém toque uma marcha fúnebre para mim, nem mesmo uma bem curtinha. Sou extraordinariamente afortunada; sou uma sobrevivente, certamente não uma vítima. Apenas mencionei meu passado porque, como todos os outros seres humanos neste planeta, eu tenho uma história complexa, que molda meus medos, meus interesses e minhas opiniões. Nunca esqueço essa complexidade interior quando estou criando um personagem fictício e certamente nunca esqueço quando se trata de pessoas trans.
Tudo o que estou pedindo – tudo o que quero – é que uma empatia e um entendimento semelhantes sejam estendidos a muitos milhões de mulheres cujo único crime é querer que suas preocupações sejam ouvidas sem receber ameaça e abuso.