Gosto muito de livros de mistério e, claro, dos livros de J.K. Rowling, então nunca houve dúvida se eu leria a série “Cormoran Strike” desde que descobrimos quem estava por trás do pseudônimo Robert Galbraith. O quinto livro, Troubled Blood, nem estava muito nas minhas prioridades até que a minha timeline no Twitter decidiu que era, aparentemente, o livro mais importante do ano.
AVISO: nessa resenha vou comentar sobre transfobia e sobre a minha opinião sobre o personagem homem cis que se veste de mulher, além de citar passagens do livro que contêm conteúdo adulto. Entendendo que esses assuntos podem ser muito desconcertantes para algumas pessoas, optei por inserir esse aviso.
Para minha surpresa, achei Troubled Blood (“sangue turvo” em tradução livre) o melhor da série até agora. Depois da leve decepção que tive com Branco Letal, que pareceu se afastar um pouco do estilo de investigação intrincado, complicado e bizarro de Rowling, fico feliz de ler uma sequência na qual ele foi elevado à máxima potência.
Cormoran Strike está de férias na Cornualha na casa de seus tios quando, num bar, é interceptado por uma mulher cuja mãe, a médica Margaret (Margot) Bamborough, desapareceu em 1974. As circunstâncias do desaparecimento e principalmente da investigação posterior são o que dão corda para a narrativa.
Na investigação, o policial responsável (Bill Talbot) entrou em uma paranoia que envolveu astrologia, bruxaria, satanismo e cartas de tarô. O fã mais atento deve se lembrar das imagens que Rowling colocou no header do seu perfil no Twitter, do mapa astral de Aleister Crowley e das cartas do tarô Toth, também de Crowley.
Um dos suspeitos do desaparecimento era Dennis Creed, um assassino em série que, depois de preso, nunca quis deixar claro se Bamborough tinha sido uma de suas vítimas. Creed, o “açougueiro de Essex”, era conhecido por sequestrar, torturar por meses e finalmente decapitar e desmembrar suas vítimas.
Talbot, o investigador, tinha certeza de que o “açougueiro de Essex” tinha matado Bamborough, e toda sua investigação foi prejudicada por causa desse viés. Ele tentava provar através da posição dos planetas que alguma das pessoas envolvidas com a vítima era o assassino em série.
Alguns minutos depois, tendo lido algumas páginas na internet de astrologia com uma expressão de leve desgosto, [Strike] interpretou com sucesso a frase de Talbot. Lia-se: ‘décimo segundo (Peixes) encontrado. Portanto COMO ESPERADO o assassino é Capricórnio’.
Peixes era o décimo segundo signo do zodíaco, e Capricórnio o décimo. Capricórnio também era o signo da cabra, que Talbot, em seu estado maníaco, parecia ter conectado com Baphomet, o deus com cabeça de cabra.
— Puta que pariu — sussurrou Strike, virando para uma nova página de seu caderno e escrevendo alguma coisa.
O açougueiro de Essex
Baseado em dois assassinos do mundo real (Jerry Brudos – que inclusive é mencionado na história – e Russell Williams), o “açougueiro de Essex” tem um hábito que aparece no livro e que recebeu muita atenção da mídia no mundo real pouco antes do lançamento do livro: ele gostava de se vestir de mulher. Essa caracterização do personagem, no entanto, tem pouca importância para o enredo, e não há juízo de moral sobre o hábito isolado. A única relação dos crimes com essa característica é que as roupas que ele usava eram provavelmente de suas vítimas.
Não é meu lugar dizer se o livro é transfóbico ou não. Vou ser sincero: não achei que fosse. Mas vendo um pouco melhor a questão, analisando com base em teorias da comunicação e ouvindo pessoas trans que leram o livro, cheguei à conclusão de que a transfobia é difícil de entender, mas existe.
Dennis Creed não é uma mulher trans, mas sua caracterização, especialmente o fato de “se vestir de mulher” ser um dos sintomas da sua psicopatia, pode sim ser associada às pessoas trans, especificamente àquelas que não são binárias (nem homem nem mulher) ou até mesmo pessoas que não são trans mas que não conformam ao gênero. A caracterização tem grande potencial derrogatório e problemático, principalmente quando sabemos que as representações de vivências trans no mainstream não são muito melhores do que essa, e que Rowling tem dificuldade de assimilar as pessoas não binárias ou as que não fazem transições medicalizadas à sua ideia de “transexualidade”.
Se fosse o caso de usar o livro como uma ferramenta para propagar as ideias que desenvolveu em seu ensaio, seria muito mais eficiente colocar alguma das vítimas de Creed em um banheiro feminino, ou dizer que ele se vestia de mulher unicamente para ter acesso a elas, o que não é o caso, apesar do Pink News ter feito parecer. Ela está reproduzindo um trope transfóbico no pior momento possível.
Creed é uma pessoa doente que sente tesão em se vestir de mulheres. Desde pequeno roubava roupas das vizinhas e de suas parentes para usar enquanto se masturbava. Não é justo dizer que esse era seu modus operandi, como fez o tabloide, já que apenas em um dos casos é sabido que ele estava com roupas femininas ao capturar uma vítima.
Vou falar mais sobre esse assunto na parte que contém spoilers, mais abaixo, mas por enquanto, voltemos ao conteúdo mais significativo do livro, que é a exploração de Robin Ellacot, a parceira de Cormoran Strike, do feminismo.
Feminismo na década de 70
Com um crime ambientado na década de 1970, conhecida pela segunda onda feminista nos Estados Unidos, e com uma vítima feminista militante, Rowling não perde a chance de comentar praticamente todos os aspectos da luta das mulheres, que teve alguns de seus capítulos mais importantes sendo escritos naquela década. No ano de 1970, por exemplo, a “Women’s Liberation Conference” aconteceu na Inglaterra.
Há discussões também sobre aspectos delicados do movimento feminista, como a estética do discurso radical e as lutas que as pessoas travam em ambientes limitados. Há uma discussão no capítulo 40 onde Strike se desentende com alguns estudantes sobre a forma como eles praticam seu ativismo.
Strike vê o ativismo que a mãe fazia espelhado na conversa dos estudantes, e a narração nos diz que ele o considerava uma “forma de exibicionismo”, uma crítica aos ativistas perseguidores de influência, que geram capital social através de demagogia moralista disfarçada de “posicionamento” e “coragem”, principalmente nas redes sociais e outros lugares de comunicação limitada.
Eles não queriam ouvir as histórias de Strike porque era muito mais confortável acreditar que somente a linguagem seria suficiente para remodelar o mundo.
Outra questão trabalhada através de diálogos e sem muita interferência da narração é uma crítica veemente que Rowling faz à narrativa do feminismo radical que chegou ao feminismo mainstream: a da “morte ao homem”. Uma das pessoas envolvidas no caso foi uma mulher negra, feminista e casada com um homem negro que foi posteriormente acusado de estupro por uma mulher branca. Abaixo colo um trecho do diálogo.
— Quando éramos pequenas, […] nosso pai foi condenado por estupro e mandado para a cadeia. […] Ele não era culpado. […] Ele namorou uma mulher branca por alguns meses, o bairro inteiro sabia. Eles foram vistos em bares em vários lugares. Ele quis terminar e ela o acusou de estupro.
O estomago de Robin balançou como se o chão tivesse entortado. Ela queria muito que essa história fosse mentira. A ideia de uma mulher mentir sobre estupro era repugnante.
— Uma coisa fácil de uma mulher branca fazer com um homem negro, especialmente em 1972.
O homem em questão era ex-marido de Wilma, uma funcionária de Margot Bamborough que recebeu auxílio legal da médica no processo de divórcio. Robin, que se enxerga espelhada em Margot, então, tem um choque de realidade depois de conversar com essas mulheres negras e feministas.
Ele culpava a dra. Bamborough de persuadir a mamãe a deixar o papai, porque, sabe, a mamãe realmente precisava de uma mulher branca para mostrar que sua vida era uma merda. Ela jamais perceberia sozinha.
Robin reflete sobre aspectos de seu casamento falido, Strike sobre o relacionamento dos pais, mulheres envolvidas no caso têm suas vidas reviradas por causa de homens abusivos, um dos suspeitos é um coach que luta contra uma “sociedade ginocentrista”… Tudo isso é só um pequeno vislumbre das discussões que estão presentes nas 944 páginas de Troubled Blood, que, se eu tivesse que dizer que tem um tema, esse tema seria “a dinâmica entre homens e mulheres”. Dennis Creed e a ambiguidade de suas roupas estão ali para sublinhar essa dicotomia.
ATENÇÃO: A partir de agora vou considerar que você, caro leitor, leu ou não pretende ler o livro. As informações que seguem contêm SPOILERS do final do livro, incluindo o assassino e a resolução do mistério.
Voltando ao mistério e com o tema do livro em mente, é necessário apontar a pista falsa que é a razão narrativa por trás do assassino em série Dennis Creed usar roupas de mulher: o misterioso personagem Theo, que foi a última paciente que Margot Bamborough atendeu em seu consultório no dia em que desapareceu.
Além do nome ambíguo, Theo foi descrito por um dos envolvidos no caso como “parecendo um homem vestido de mulher”, porque este personagem acreditava piamente na teoria de que quem tinha pegado Margot era Creed. O fato foi, é claro, levado em consideração como importantíssimo por Bill Talbot, o investigador obcecado em sua própria teoria.
No final, descobrimos que Theodosia — esse era o nome da moça — não tinha nada a ver com o caso, e tampouco soube do desaparecimento da médica na época, já que não morava em Londres. Theodosia não era Denis Creed, e a pista falsa não foi nem seguida por Strike com seriedade.
Acredito que não foi a transfobia de Rowling que inspirou Dennis Creed. Pelo contrário, acho que sua exploração do feminismo, que ela muito provavelmente fez antes e durante a escritura do livro, a levou para lugares do feminismo radical que a fizeram ter a ideologia que tem hoje. Esse livro está em desenvolvimento desde antes de ela se envolver com o movimento feminista radical. Ela terminou o manuscrito em janeiro!
Dennis Creed se veste de mulher para ser confundido com Theo. É uma referência, uma piscadela, ao tema desse livro, que é a dinâmica de poder entre homens e mulheres. Também brinca com o fato de todos os suspeitos serem homens enquanto a verdadeira assassina era uma mulher. Infelizmente foi a escolha errada na hora errada, mas definitivamente não se trata de um livro cuja moral é algo tão superficial e simplista quanto “nunca confie num homem de vestido”.
Este artigo representa a opinião do autor.