J.K. Rowling

The Witch Trials of J.K. Rowling – Episódio 1 – Tradução

Arte de chamas amarelas, vermelhas e laranja. No centro, o texto "TRADUÇÃO, EPISÓDIO 1 - The Witch Trials of J.K. Rowling - Criado na tristeza".
Escrito por Igor Moretto

No dia 21 de fevereiro, foi lançado o primeiro episódio do podcast The Witch Trials of J.K. Rowling (Os Julgamentos das Bruxas de J.K. Rowling, em tradução livre). Caso você não saiba do que se trata, pode ler a notícia sobre ele aqui.

Ouvindo os episódios no meio de uma gripe demoníaca, decidi que a melhor maneira de trazer esse conteúdo aos nossos visitantes seria traduzindo o que nos interessa: o que J.K. Rowling disse.

Portanto, na nossa tradução, vamos deixar de lado a narrativa do podcast, explicando quando for necessário explicar, é claro, e traduzindo apenas o que a autora disse.

Abaixo, portanto, você pode ler todos os trechos da entrevista exclusiva que a jornalista Megan Phelps-Roper conseguiu. Se você achar que falta alguma contextualização ou erros na tradução, não deixe de comentar!

Episódio 1 – Criado na tristeza

Traduzido por Igor Moretto

Minha intenção nunca foi chatear ninguém. No entanto, não me senti desconfortável ao descer do meu pedestal. E as respostas que me chamam a atenção nos últimos dez anos e, definitivamente, nos últimos dois ou três anos – principalmente nas redes sociais – são: “Você arruinou seu legado” e ‘Você poderia ser amada eternamente, mas escolheu falar isso.” E eu penso: “Vocês não poderiam ter me compreendido de pior forma.”

Não fico andando pela minha casa pensando no meu legado. Sabe? [risos] Que maneira pomposa de se viver! Andar por aí se perguntando: “Qual será meu legado?” Não importa. Eu vou estar morta. Me importo com o agora. Me importo com quem está vivo.

Megan Phelps-Roper: Vou começar com uma grande pergunta. Por que você acha que nós, humanos, e especialmente as crianças menores, gostamos tanto de histórias sobre bruxos e bruxas, gigantes, magia das trevas… O que há em nós, e o que há na magia e no mundo mágico, que nos atrai tanto?

J.K. Rowling: Me interesso muito nisso, porque eu acho que fala sobre algo muito profundo na natureza humana. A magia dá às pessoas um poder que elas não teriam de outra forma. E acho que isso é particularmente atrativo para crianças, porque crianças são, inevitavelmente, impotentes. Até crianças em famílias felizes não têm poder. E a ideia de se ter um poder secreto, extraordinário e sobrenatural é muito sedutora. Para todos nós, adultos também. Mas é particularmente sedutora para as crianças.

Megan: Quero voltar ao início. Sei que você já falou sobre esse período da sua vida muitas vezes no decorrer dos anos – o período exatamente antes da publicação de “Harry Potter”. Mas também sei que as nossas histórias não são fixas. Elas mudam com o tempo e com a possibilidade de olhar para trás e viver novas experiências, e dependendo de onde você está na sua vida quando conta a história novamente.

Rowling: Sei exatamente do que você está falando. É verdade, fui questionada milhões de vezes sobre quando tive a ideia no trem e contei a história muitas vezes. Mas você olha para trás e, do nada, tropeça em uma piscina de autoconsciência e memória que pode ser muito iluminadora.

Eu tive a ideia de “Potter” em um trem quando eu tinha 25 anos. Eu nunca soube realmente de onde essa ideia veio. Simplesmente apareceu na minha mente e eu pensei imediatamente: “Preciso escrever isso. Meu Deus, eu amo essa ideia.”

O engraçado é que eu nunca fui uma grande leitora de fantasia. O que mais me interessa é a natureza humana acima de tudo. Esse menino, que não é muito feliz e que tem pouco poder, de repente percebe o que tem e quem é.

Megan: Você consegue voltar à sua vida nos anos 90? Ouvi você descrever esse período como, essencialmente, seu maior medo se tornando realidade.

Rowling: Sim, o começo dos anos 90 não foi bom para mim. [risos] Eu estava em um fluxo complicado. Minha mãe estava muito doente, eu havia mudado de Londres para Manchester e ela acabou morrendo na noite do dia 30 de dezembro de 1990, porém eu não soube até as primeiras horas da véspera de Ano Novo. Ela tinha 46 anos e estava doente havia muito tempo, mas nós não imaginávamos que a morte estava tão próxima. Isso praticamente demoliu minha vida.

Para mim, essa década se tornou intrinsecamente ligada à perda. E podem achar que isso faria com que eu desistisse de escrever, mas, na realidade, essa perda e esse desespero que eu sentia começaram a entrar para a história.

[A história que Rowling começou a escrever era sobre um garoto órfão]

Rowling: Eu usei esse padrão narrativo por seis meses antes mesmo de minha mãe morrer e, na realidade, ser órfão é uma tragédia. E agora eu entendia de verdade o que era perder alguém.

O manuscrito, que só eu sabia que existia – eu não tinha falado sobre ele com ninguém -, foi a única coisa a que me apeguei na minha jornada.

[Em 1991, aos 25 anos, Rowling terminou com o namorado, se demitiu e deixou a Inglaterra]

Rowling: Decidi que eu deveria ir embora. Fui para outro país. Sabia que gostava de ensinar, então pensei: “Vou embora. Vou tirar um ano para ensinar.” Não sei exatamente o porquê, mas escolhi ir para Portugal e, no começo, funcionou. Estava longe, em um ambiente diferente, e estava me ajudando.

Mas acredito que eu ainda estava incrivelmente emocionalmente vulnerável, então ao mesmo tempo que foi divertido e que houve um alívio em não estar rodeada pelo que eu já conhecia, eu também estava muito perdida, e fingia não estar perdida.

Megan: Então você chegou a Portugal e conheceu um cara.

Rowling: Sim. Conheci um cara acho que no meu sexto mês lá. Em um bar, com minhas amigas, um cara bonito me disse que era um jornalista. Começamos a namorar e estava tudo certo. Eu estava meio perdida, meio à deriva em uma coisa que não era perfeita, mas era bom ser desejada. Era bom ter afeto. Mas estava à deriva.

[Eles começaram a morar juntos. Um ano se passou]

Rowling: E, então, eu engravidei sem querer. E, por eu estar grávida, ele me pediu em casamento. Mas aí perdi o bebê. Tive um aborto espontâneo que foi muito traumático. Física e emocionalmente. Foi outra perda enorme e eu creio que naquele ponto eu estava… Eu certamente não estava em um estado mental muito balanceado e, quando perdi o bebê, em luto pelo bebê, me lembro de ter pensado: “Então não vamos nos casar, certo?” Estava falando comigo mesma: “Está claro, Jo, você não vai se casar com esse cara.”

Mas ele me colocava sob muita pressão para casar. Então aceitei, e engravidei quase imediatamente quando nos casamos. O que é uma coisa maravilhosa, porque não consigo imaginar um mundo sem a minha Jessica. Então entre todo o mal, houve uma coisa incrível e maravilhosa que surgiu dali, a minha família.

Megan: Mas, pelo que sei, antes mesmo de sua filha nascer, seu marido se tornara cada vez mais abusivo.

Rowling: A situação era ruim, mas você precisa passar por ela para entender o que você escolheria fazer.

Deixei-o duas vezes até que o deixei definitivamente. E então voltei duas vezes. O casamento tinha se tornado muito violento e muito controlado. A essa altura, ele estava inspecionando minha bolsa sempre que eu chegava em casa. Eu não tinha as chaves para a casa porque ele queria controlar a porta. E eu acho que ele não era estúpido, acho que sabia ou suspeitava que eu tentaria fugir de novo.

Era um estado horrível de tensão, porque eu tinha que atuar e eu não acho que sou uma boa atriz. Não tenho uma poker face muito boa. Era muito difícil agir como se eu não planejasse ir embora. Era um jeito terrível de se viver.

E, mesmo assim, o manuscrito continuava a crescer. Eu continuava escrevendo. E ele sabia o que esse manuscrito significava para mim, porque teve um ponto em que ele pegou o manuscrito e escondeu. Era seu refém.

Quando eu finalmente decidi que iria embora, que bastava, que eu iria embora definitivamente, eu comecei a pegar algumas páginas do manuscritos e levar ao trabalho. Só algumas páginas para que ele não percebesse que havia algo faltando. E então eu fotocopiava. Então, gradualmente, em uma caixa na sala dos professores, um manuscrito fotocopiado cresceu.

Eu suspeitava que se eu não conseguisse sair com o manuscrito inteiro, ele o queimaria ou pegaria e usaria como refém. Aquele manuscrito significava tanto ainda para mim que foi a coisa que priorizei na hora de salvar. A única coisa que coloquei na frente disso foi, obviamente, minha filha, mas àquela altura ela ainda estava dentro de mim, ou seja, o mais seguro possível naquela situação.

[Em julho de 1993, Rowling deu à luz uma menina e chamou-a de Jessica, em homenagem a uma de suas escritoras favoritas, Jessica Mitford. Ela disse que foi essa experiência materna que a empurrou à mudança]

Me lembro bem claramente de pensar – e esse foi provavelmente o momento no qual eu decidi que deveria sair de lá – que eu não queria que Jessica crescesse assistindo a mãe passando por isso. Eu não queria que ela crescesse acreditando que isso era normal.

[Então ela começou a procurar uma maneira de ir até a irmã, que morava na Escócia]

Eu estava planejando uma fuga ordeira. Tentava preparar as coisas para levar minha filha de forma tranquila e organizada. Mas em uma noite – não sei nem o que começou tudo e isso foi há uma semana da minha fuga planejada – ele ficou muito bravo comigo e eu desabei, e disse que queria ir embora. Ele ficou muito violento e disse: “Se você quer ir, pode ir, mas não vai com Jessica. Eu vou ficar com ela. Eu vou escondê-la.”

Então comecei a brigar – e paguei por isso. Foi uma cena muito barulhenta e violenta que terminou comigo jogada na rua. Pensei em ir à polícia e fui. Fui avaliada e foi constatado que eu obviamente tinha sido agredida, já que estava bastante machucada, e eu registrei uma queixa. No dia seguinte, voltei para a casa com a polícia e peguei Jessica de volta.

Megan: Ver você hoje, como uma das mulheres mais poderosas e influentes do mundo, quase parece que você está descrevendo outra pessoa, sabe? Uma pessoa sem a chave do seu próprio apartamento, sendo agredida fisicamente, planejando uma fuga…

Rowling: Mas é o seguinte, eu ainda sou essa pessoa. Eu ainda sou essa pessoa, entende? Para mim, a linha que conecta as duas é muito visível. 

[Rowling e sua filha se mudaram de Portugal para Edimburgo, na Escócia. Com apenas algumas malas e nada na conta bancária, ela estava recomeçando. De novo]

Megan: Quando você voltou para o Reino Unido, como ficou sua vida?

Rowling: Não vou dizer que era o pior possível, porque não era. Eu tive muitas pessoas boas que me ajudaram. Eu pude ficar na casa da minha irmã, o que não é o caso para muitas pessoas que se encontram em uma situação dessas. Acho que passei duas ou três semanas com a minha irmã e logo me mudei para meu próprio apartamento, que estava mais para um bedsit.

Megan: Um o quê?

Rowling: Bedsit, vocês não têm isso? É tipo uma sala e meia. Meu primeiro apartamento tinha um banheiro, mas praticamente todo o resto ficava junto.

Megan: Como um estúdio?

Rowling: Sim, mas “estúdio” soa tão glamuroso… [risos]

E então Decca – eu chamo Jessica de Decca – e eu dividíamos um quarto.

[Rowling diz que estava mais à deriva neste momento do que quando saiu da Inglaterra. Ela estava divorciada, não tinha dinheiro, era uma mãe solteira e tinha acabado de se matricular em um curso de treinamento para professores na esperança de, eventualmente, conseguir um trabalho em alguma escola local]

Mas eu estava vivendo na base de auxílios do governo e, a essa altura, minha saúde mental não estava boa, definitivamente. Eu nunca havia morado na Escócia, apesar de ter ancestrais escoceses. Eu vim para cá porque minha irmã estava aqui.

Eu estava dissociando, perdendo tempo, tendo pensamentos suicidas… Eu estava em uma posição muito sensível e triste.

[E é por essa tristeza, essa posição, que ela agora é quase agradecida]

Isso tirou da minha frente aquilo que não era essencial. Me mostrou, mesmo eu estando toda perdida, que eu tinha uma filha que eu amava mais do que tudo na minha vida, um amor que eu nunca tinha sentido antes, e isso era tão poderoso, e eu continuei trabalhando naquela história.

Passei 17 anos trabalhando em “Potter” e há coisas que eu entendo naquela história que ninguém mais pode entender, e que eu mantenho como valores. Mesmo a minha vida tendo melhorado e minha mente se tornado mais saudável, eu ainda estava comprometida a partes que eu criei na tristeza, porque tinha verdade nelas. E poder.

[Parte do mito de “Harry Potter”, que aconteceu de verdade, é que o primeiro livro foi rejeitado por 12 editoras diferentes antes de, finalmente, alguém querer publicá-lo]

As editoras querem se estar de acordo com o zeitgeist, o que é uma decisão de negócios. Eu acho que, às vezes, elas cometem erros. [risos] E o que elas acreditam ser o zeitgeist acaba sendo uma interpretação rasa e simplista do zeitgeist, mas isso é outra conversa.

Acho que havia três problemas para elas no livro: primeiro, achavam o internato muito antiquado e que ninguém se interessaria. Segundo, que era muito longo. [risos] O primeiro tem 95 mil palavras, e eu nem me lembro quantas há em Ordem da Fênix, mas mal sabiam eles o que estava por vir. E terceiro… Não tenho certeza, mas acho que pelo fato de ele ser um menino, não queriam que eu usasse o meu primeiro nome. Queriam que eu usasse minhas iniciais.

[Em 1997, quinhentas cópias do livro foram distribuídas para livrarias e bibliotecas]

A primeira vez que eu vi o livro em uma livraria para mim foi uma coisa que eu nem consigo explicar. Pensei: “Eu sou uma escritora publicada! Olha, ali está!”

Megan: Você se lembra onde o viu em uma livraria pela primeira vez?

Rowling: Me lembro como se fosse hoje. Não existe mais hoje, era uma Waterstones [franquia de loja de livros]. E eu, de verdade, não entrei para procurar por ele, entrei para comprar um livro infantil para minha filha. Virei e olhei para a seção dos autores com R e, enquanto pensava “vai estar ali”, eu o vi.

Era um livro completamente desconhecido, não tinha nada, não tinha festa de lançamento, essas coisas não eram normais.

Megan: Não estava na vitrine?

Rowling: Não! [risos] É claro que não! Silenciosamente apareceu na prateleira. E foi um dos melhores momentos da minha vida. [risos] Foi um sentimento incrível.

Tinha pouquíssimo orçamento para marketing, mas ficou claro muito cedo que as crianças estavam conversando entre si sobre o livro. Foi boca-a-boca e começou a crescer.

Eu fui tão mal preparada para o que aconteceu comigo. Eu estava muito agradecida, extremamente agradecida, que o trabalho estava sendo amado. Essa parte só me trouxe felicidade. E, materialmente falando, minha vida foi transformada. Pela primeira vez na vida pude comprar uma casa. Mas eu estava assustada. O que aconteceu comigo no quesito fama me passou para trás constantemente.

Comprei uma casa bem comum que ficava em uma rua comum e os jornalistas ficavam estacionados em frente à minha casa, a metros da minha porta. Então parecia que toda hora eu precisava me atualizar sobre a situação. Tudo estava mudando muito mais rápido do que eu conseguia lidar.

E, toda hora, um medo estava presente: eu sabia que havia alguém no mundo que não me desejava bem. [risos] Isso foi estranho. E então… para te dizer a verdade, o motivo pelo qual deixamos aquele lugar foi porque meu ex-marido apareceu e invadiu. Então a mudança foi uma necessidade àquela altura.

Megan: Durante todo esse tempo você ainda estava preocupada porque precisava escapar do seu marido.

Rowling: Isso é o mais insano de tudo isso. Tentei construir um muro de ferro em volta da minha casa, porque vinham pedir para me fotografar dentro de casa, e eu falava: “Não, não pode me fotografar em casa”, e eles: “Por que não? Você está sendo tão afetada e arrogante!” E não era isso. Na verdade, era o oposto. Era porque da última vez que meu ex-marido soube meu endereço, ele apareceu e invadiu a casa.

Megan: Como foi para você ser essa estrela em ascenção e, ainda assim, tentando se esconder?

Rowing: [risos] Acho que esse é o melhor resumo da minha situação que eu já ouvi. Ter que conciliar ter uma coisa que está tendo muito interesse da imprensa e querer viver escondida por um motivo muito concreto – não porque eu achava que era o Salinger ou a Greta Garbo, mas por segurança.

Eu viva em um estado de muita tensão sobre o qual eu não podia conversar com muita gente.

Quando chegamos ao ano 2000, de repente, tudo pareceu crescer muito. Tudo, do meu ponto de vista, ficou mais enlouquecedor. Eu estava assinando para cerca de 2000 pessoas ao mesmo tempo. Haviam brigas no estacionamento. Haviam seguranças lá. Há algo sobre uma massa de seres humanos. Sempre há espaço em uma multidão.

[E então, em 2000, em um evento de assinatura de livros…]

Rowling: Fomos ameaçados com uma bomba em uma loja, alegadamente por uma pessoa cristã da extrema direita. As coisas estavam ficando um pouco nervosas neste período.

Continua no segundo episódio…

Sobre o autor

Igor Moretto

Igor já trabalhou como tradutor de conteúdo em diversos sites. Hoje, formado em Produção Audiovisual, procura alimentar o Animagos com novidades e é responsável pelo Podcast Animagos.