J.K. Rowling

The Witch Trials of J.K. Rowling – Episódio 2 – Tradução

Arte de chamas amarelas, vermelhas e laranja. No centro, o texto "TRADUÇÃO, EPISÓDIO 2 - The Witch Trials of J.K. Rowling - Queimem a bruxa".
Escrito por Igor Moretto

O podcast The Witch Trials of J.K. Rowling (Os Julgamentos das Bruxas de J.K. Rowling, em tradução livre) explora as controvérsias em que a autora de “Harry Potter” se envolveu, desde o lançamento da série até os dias de hoje. Leia mais sobre o podcast aqui. O Animagos está traduzindo os episódios. O episódio 1 está disponível aqui.

No segundo episódio, a jornalista Megan Phelps-Roper trata do frenesi por trás de “Harry Potter” que aconteceu no começo dos anos 2000, quando muitas igrejas, pastores e sacerdotes condenaram a série e acusaram-na de promover a bruxaria.

Megan entrevista pessoas envolvidas em casos na justiça para retirar os livros da série das bibliotecas escolares e analisa os argumentos à luz da contemporaneidade. Um dos entrevistados, inclusive, é um advogado que representou os fundamentalistas cristãos na época e que hoje, depois de ler “Harry Potter”, entende que errou em seu julgamento.

O episódio também faz uma alusão aos julgamentos das bruxas de outrora e investiga, com a ajuda de uma historiadora especialista no assunto, o que faz as pessoas sentirem necessidade de perseguir pessoas consideradas diferentes, inclusive com argumentos apelativos e pânico moral.

J.K. Rowling fala sobre como foi passar por tudo isso e comenta sobre alguns aspectos interessantes da narrativa de “Harry Potter” que retratam e criticam a dicotomia no pensamento humano. Veja a tradução dos trechos da entrevista abaixo.

Episódio 2 – Queimem a bruxa

Traduzido por Igor Moretto

[Rowling diz que não se surpreendeu com a retaliação]

J.K. Rowling: A experiência nos Estados Unidos foi, não pela primeira vez, muito diferente da experiência no Reino Unido. Me lembro de falar sobre isso com meu editor americano e ele foi bem duro, dizendo: “Isso não é verdade. Estes livros são bastante morais.” E eu me lembro de dizer a ele que isso era inevitável. E, com isso, eu quis dizer que tudo tinha ficado muito grande. Simplesmente tinha crescido demais. Existem vários outros livros sobre bruxas e bruxos, mas eu acho que a resistência aconteceu por causa do tamanho de tudo. As pessoas estavam assustadas com o tamanho.

Megan Phelps-Roper: Quando você via essas pessoas literalmente queimando seus livros e tentando baní-los de escolas e bibliotecas, o que você entendia que estava acontecendo com elas?

Rowling: Isso é uma coisa que eu exploro nos livros de “Potter”. A sensação de justiça não é incompatível com o ato de fazer coisas horríveis. Muitas das pessoas envolvidas em movimentos que consideramos extremamente abomináveis acham que estão do lado da justiça, que estão fazendo a coisa certa e se sentem justificados no que fazem. 

Para mim, pessoas que queimam livros, por definição, passaram de um limite, o limite do debate racional. “Vou simplesmente destruir a ideia que não gosto e, se não posso destruí-la, então vou destruir sua representação. Vou queimar este livro.” Não há um livro neste planeta que eu queimaria. Nenhum. Inclusive livros que eu acho que são sim prejudiciais. Queimar, para mim, é o último recurso de quem não consegue argumentar.

Megan: Um tema que aparece logo no começo dos livros é sobre as pessoas, como os tios de Harry, que dizem: “Não faça perguntas.” E eu me pergunto qual é o significado de ter essa grande jornada de sete livros começando com esse tema.

Rowling: É como os queimadores de livros. [Os Dursley] têm certeza absoluta de que estão fazendo a coisa certa e isso justifica a crueldade, a punição injusta… Dizem que ele é coisas que ele não é, que ele é mau, que está errado… E escondem informações. O tema “não faça perguntas” e as cartas queimadas estão lá desde o começo. “Você não pode olhar para além do que nós dizemos que é normal. Do que nós dizemos que é o mundo.”

Megan: Há várias histórias, especialmente infantis, onde os heróis são os heróis e os vilões são os vilões, e a única questão real dessas histórias é se o herói vai derrotar o vilão. Mas não é assim em “Harry Potter”. Os heróis são falhos, alguém que achávamos que era um vilão acaba salvando o dia… E há muitos personagens que, quando vistos pela primeira vez, pensamos que são ruins ou assustadores, mas que, na verdade, são só incompreendidos.

Um dos temas iniciais dos livros é: se você quer descobrir a verdade, não deve concluir apressadamente; que seus preconceitos podem te trair e que seu primeiro julgamento pode estar errado. Você parece ter uma profunda percepção sobre esse tipo de comportamento humano, essa tentação que é cair em uma moralidade dicotômica. Mas também há uma realidade clara nos livros de que existe sim o bem e o mal, e apesar de não ser sempre fácil de discernir, no fim das contas você precisa discernir.

Como você discerne quando um comportamento é um ou outro?

Rowling: Essa é uma pergunta tão profunda, e é central em “Potter”. É central na maioria das minhas visões de mundo.

O personagem irredimível de “Potter” desumanizou a si mesmo. Voldemort retirou de si mesmo, conscientemente e deliberadamente, a sua humanidade e vemos o resultado natural do que ele fez consigo mesmo através de uma magia muito poderosa. Ele termina de uma forma sub-humana e ele fez isso deliberadamente, porque ele vê o comportamento humano como fraqueza. Ele se reduziu a algo que não consegue sentir toda a gama de emoções humanas.

Há um apelo muito grande, e eu tento mostrar isso nos livros de “Potter”, ao pensamento dicotômico. É a posição mais fácil de se estar e muitas vezes é também a posição mais segura de se estar. Se você escolhe tudo ou nada em qualquer assunto, você definitivamente encontrará camaradas. Você vai encontrar uma comunidade que jurou fidelidade a essa ideia.

Porém, o que eu tento mostrar nos livros (e eu acredito fortemente nisso) é que devemos desconfiar muito mais de nós mesmos quando temos muita certeza. E que devemos nos questionar muito mais quando sentimos uma descarga de adrenalina ao dizer ou fazer algo. Muita gente confunde essa descarga de adrenalina com a voz da consciência. “Me senti bem dizendo isso, então estou certo.” Mas, na minha visão de mundo, a consciência fala através de uma voz muito baixinha e inconveniente que geralmente diz: “Pense novamente. Pense com mais profundidade. Reconsidere isso.”

Me chama a atenção desde muito cedo que os dois personagens que mais causam debates furiosos (e às vezes são literalmente furiosos) são Dumbledore e Snape. As pessoas queriam que Dumbledore fosse perfeito, mas ele é profundamente falho. Porém, para mim, ele é um exemplo de bondade. Ele errou, aprendeu e se tornou sábio, mas ele tem que tomar decisões difíceis que pessoas no mundo real precisam tomar. Decisões muito difíceis.

Ao mesmo tempo, há Snape, um bully incontestável que é maldoso, sádico e amargurado, mas que é corajoso e está determinado a consertar seus erros mais terríveis. Sem ele, o desastre aconteceria.

Alguns fãs ficam muito bravos comigo por eu não categorizar Snape em particular, querendo clareza e simplicidade. “Vamos concordar que esse cara é ruim?” E eu penso: “Bem, não posso concordar com você. Porque eu o conheço. E eu não posso concordar com você simplesmente porque não posso.” As pessoas são profundamente imperfeitas, cometem erros e fazem coisas ruins. Inclusive, me apresente algum ser humano que nunca fez nada de ruim! E essas pessoas também podem fazer coisas grandiosas. Grandiosas no sentido moral, não no sentido de fama ou de realizações.

Continua no terceiro episódio…

Sobre o autor

Igor Moretto

Igor já trabalhou como tradutor de conteúdo em diversos sites. Hoje, formado em Produção Audiovisual, procura alimentar o Animagos com novidades e é responsável pelo Podcast Animagos.