A Rocco anunciou nesta quarta-feira (27) que o roteiro de ensaio de Harry Potter e a Criança Amaldiçoada será publicado em português no dia 31 de outubro, três meses depois do lançamento em inglês e, ao mesmo tempo, um mês a menos do que Relíquias da Morte demorou para ser publicado por aqui. Mesmo que isso signifique um avanço, ainda é algo problemático.
Nem é preciso mencionar toda a polêmica em torno da peça. Seria como os comentaristas esportivos repetindo há quase quinze anos como o time do Santos revela jogadores, como se já não estivéssemos bem cientes disso. Para quem não pôde vê-lá e não procurou os spoilers, este livro é a oportunidade de saber como continua uma de suas histórias favoritas. Talvez, como eu, você não queria uma continuação, mas agora que temos uma, é impossível não ficar curioso.
Neste sábado, o roteiro vai ser lançado. Provavelmente, em poucos minutos da madrugada, ele estará disponível nos sites de torrents. E, ainda assim, ele virá bem depois ao Brasil.
Entramos em contato com a Rocco para saber o motivo, e eles nos responderam que não somente ela, mas todas as editoras estrangeiras somente irão receber os originais nesta segunda (1), depois de as edições inglesa e americana estarem nas livrarias. Ou seja, são três meses apenas entre tradução, copidesque, revisão, impressão e distribuição! Como disse a própria assessora de imprensa, “pouco tempo e uma responsabilidade enorme para colocar um livro tão importante quanto Harry Potter e a Criança Amaldiçoada nas prateleiras”.
Tratar as editoras como os leitores (na verdade, pior ainda, já que os leitores vão poder ler um dia antes) mostra a gravidade dessa delonga para a liberação.
No ramo literário, cabe à editora original repassar o material. Nem os autores nem seus agentes podem fazer absolutamente nada a respeito. O que, obviamente, é diferente com J.K. Rowling. Se quisesse, ela poderia mudar isto. Um telefonema e pronto, o livro seria enviado imediatamente. Porém, ela não o faz. Ela aceita as regras como são. Parte dessa culpa, portanto, acaba indo parar em seus braços.
De uns tempos para cá, ando com uma impressão diferente sua. Desde que me tornei fã e passei a me interessar em saber mais sobre “Harry Potter”, escuto e a leio falando como nós, fãs, somos imprescindíveis, como a comunidade é unida, única e como é importante a história que ela escreveu. São anos e anos desse amor, nos fazendo adorá-la ainda mais, a sentar mais fundo nesse trono de Rainha, carinhosamente proclamada.
No entanto, seu comportamento recente com respeito à peça parece apontar não para seu lado carinhoso, mas para seu lado de negócios. O #KeepTheSecrets dá a impressão de não somente ser um incentivo a não estragar a surpresa dos espectadores, mas a continuar a vender ingressos e os livros com os roteiros de ensaio e o oficial. Olhe bem, dois. O dobro de receita.
J.K. dá a entender não se lembrar, como ela mesmo declama, da importância de sua história. De ser bem maior do que ela e o dinheiro que recebe. Não se lembra dos fãs que vivem ao redor do planeta.
Se ela se esquece, deveria caber às editoras que lhe recordassem. Idealmente, elas deveriam se reunir e exigir que o roteiro fosse entregue a elas no mesmo dia que fosse entregue à Little, Brown e à Scholastic, e traduzir a tempo de um lançamento mundial.
Não há dúvida de que os livros serão pirateados e nem de que milhares de pessoas irão baixá-los. Quase ninguém faz por mal, para se dar bem por ser de graça. Não são todos com dinheiro que podem comprar eles físicos ou digitalmente, principalmente neste país, onde livros importados custam até o triplo do normal, apesar de, inicialmente, este não ser o caso de Criança Amaldiçoada, com preços moderados.
Recebemos o email de um leitor, que não iremos identificar, querendo ajudar a traduzir o roteiro e perguntando se conhecíamos um grupo de tradução para repassarmos seu contato. Este é um caso do que também irá acontecer: traduções próprias. Tente imaginar o quanto as editoras irão perder financeiramente por causa desse sigilo desnecessário para com o material.
Uma peça é diferente de um romance, do qual é compreensível manter o segredo. Nigel Newton, fundador e chefe executivo da Bloomsbury, por exemplo, escondia o manuscrito de Ordem da Fênix embaixo da sua cama e, quando o lia à noite, colocava quatro páginas do manuscrito de outro autor à frente, para que sua esposa e filhos não soubessem o que tinha. As páginas que ele terminava eram postas em seu cofre e entregues na manhã seguinte para a editora Emma Matthewson.
Matthewson, por sua vez, editava o livro em um computador air gap, nunca sido conectado à internet.
Com um espetáculo, é necessário que o roteiro passe pelas mãos de muita gente. A possibilidade de qualquer informação vazar antes da hora é grande. Inclusive, vale lembrar que a primeira apresentação ao grande público foi feita no começo de junho! Por que as editoras não tiveram nada pelo menos desde essa data? Seria por desconfiar delas, independentemente de já trabalharem com J.K. há tantos anos?
Apesar de ser errado, mais do que empoderamos Rowling, a idolatramos. Ela se comunica de uma forma rara, divertida, inteligente. Seu carinho aparenta ser genuíno. Ver esse lado “negativo”, humano, nos tira disso. Me tira disso e, por gostar tanto dela, fere. Talvez isso seja um reflexo sobre o fanatismo nos dias atuais e como é tênue a linha que o separa da adoração cega.
Quem sabe.
De qualquer forma, ainda podemos ter um nono “Harry Potter”. Tudo que escrevi pode ter valido a pena e ele pode ser lançado simultaneamente. Ou perdi meu tempo por completo e a dor que sinto nos meus dedos seja o sinal de um atrofiamento irreparável.
Quem sabe também.
ATUALIZAÇÃO: não valeu a pena.